F80 (147): Peyroteo
É o jogador com maior média de golos por jogo em campeonatos nacionais de todo o Mundo: 1,68. Fez as delícias dos adeptos do Sporting até se retirar para pagar dívidas com a festa de despedida.
Foi provavelmente a maior máquina de fazer golos que o futebol português alguma vez produziu. Não tinha a velocidade ou a aceleração de Eusébio, a habilidade de Figo ou o capacidade de inventar golos sozinho que tem Ronaldo, mas Peyroteo era sinónimo de uma só coisa: golo. É ainda hoje – e será provavelmente para sempre, porque o futebol entretanto mudou muito – o jogador mundial com melhor média de golos por jogo em campeonatos nacionais: 1,68, fruto de doze épocas sempre a marcar a um ritmo impressionante. E mais poderiam ter sido, não tivesse o ariete dos Cinco Violinos sido forçado a interromper prematuramente a carreira, aos 31 anos, para pagar dívidas da sua casa comercial com o dinheiro da festa de despedida.
A prova de que marcou uma época não está só nos números. Está igualmente nos títulos. Nos 12 anos em que envergou a camisola do Sporting ganhou cinco campeonatos nacionais, quatro Taças de Portugal, um Campeonato de Portugal e sete campeonatos de Lisboa, sagrando-se seis vezes melhor marcador da I Divisão. Eram tempos anteriores à criação das competições europeias ou das Bolas ou Botas de Ouro, o que o impediu de elevar as proezas a palcos internacionais, mas mesmo sem uma seleção à altura e com a interrupção do calendário internacional a tirarem-lhe a hipótese de jogar um Mundial, fechou a carreira na seleção com uns ainda assim impressionantes 14 golos em 20 jogos. Tudo somado, levou a que o avançado-centro que desembarcou em Lisboa no Verão de 1937 e que chegou a ser encarado como jogador incompleto, por privilegiar qualidades até então pouco vistas por cá, como a robustez e a potência muscular, abandonasse o futebol como maior ídolo que esta modalidade conhecera no país até então.
Fernando Peyroteo nasceu em Angola, numa família abastada e com graus nobiliárquicos na árvore genealógica. Em Humpata começou a mostrar uma especial aptidão para o desporto, fosse ele qual fosse. Praticava com a mesma capacidade modalidades tão diversas como o basquetebol, a natação, o remo, o ténis, a ginástica ou o hipismo, mas foi no futebol que assentou arraiais. Jogou no Atlético Moçâmedes e no Desportivo de Huíla antes de envergar a camisola do Sporting de Luanda, que como é natural o enviou para a casa-mãe assim que percebeu o que tinha em mãos. Fernando chegou a Lisboa a bordo do Niassa, a 26 de Junho de 1937, assumindo desde logo o compromisso de representar o Sporting. Não tinha nada assinado, pelo que teve de resistir ao assédio de outros clubes, que até lhe ofereciam melhores condições. Apesentou-se a Josef Szabó, o treinador húngaro que então dirigia os leões e que, apesar de lhe dizerem que o miúdo vinha só para aprender, percebeu que não era bem assim e deu-lhe a titularidade no centro do ataque logo a 12 de Outubro, num jogo com o Benfica, nas Salésias, a contar para a Taça Preparação.
Nas suas memórias, Peyroteo conta como, com o seu sotaque tão particular, Szabó anunciou à equipa a sua estreia: “Sinhores, a avançado-centro jogar Fernando. Ele ser pouco experiente. Mais vélios ajudar ele. Ser para bem de clube. Nada de malandragem”. O conselho terá sido bem acolhido e, logo na estreia, Peyroteo fez dois golos na vitória leonina por 5-3. Dois golos que o ajudaram a superar a desconfiança e, apesar de ele ser branco, até o racismo com que alguns olharam para ele, por vir de Angola. A verdade é que o miúdo que vinha para aprender nunca mais deixou o lugar: 12 golos na vitória leonina nesse campeonato de Lisboa conduziram à sua estreia no campeonato nacional logo à primeira jornada, a 16 de Janeiro de 1938, com um golo num 7-2 do Sporting ao Barreirense. Nesse primeiro campeonato fez 34 golos, sagrando-se melhor marcador ex-aequo com o portista Kordnya e só ficando em branco numa das 14 jornadas: a derrota por 1-2 com o FC Porto. Em contrapartida, marcou quatro golos num só jogo à Académica, cinco ao Académico do Porto e seis ao Carcavelinhos. E com mais onze golos nos seis jogos em que participou no Campeonato de Portugal – a prova a eliminar – conquistou o seu primeiro troféu de âmbito nacional, marcando presença, ainda que sem marcar, na final ganha ao Benfica (3-1), um ano exato sobre o dia da sua chegada à metrópole.
Por essa altura, já Peyroteo se estreara na seleção nacional. Na primeira internacionalização, a 24 de Abril de 1938, não marcou, mas Portugal conseguiu um bom empate a uma bola contra a Alemanha em Frankfurt. O primeiro golo veio na segunda partida, a 1 de Maio, na negra contra a Suíça, em Milão (1-2) que deixou Portugal fora do Mundial de França. Enquanto durou a carreira de Peyroteo, não houve mais campeonatos do Mundo, fruto do horror que foi a II Guerra Mundial. E a máquina goleadora do futebol português perdeu uma chance mais de se mostrar ao Mundo. Só lhe restava o calendário nacional, portanto. Ainda assim, apesar de ter voltado a ser campeão de Lisboa em 1938/39, naquele que foi o seu regional mais produtivo de todos (23 golos), Peyroteo viu a produção baixar e falhou alguns jogos da I Divisão, por lesão, não indo além dos 14 golos, aos quais somou mais oito na Taça de Portugal, em que o Sporting não passou das meias-finais. E os golos foram tudo o que tirou da época de 1939/40: 17 no campeonato de Lisboa, 29 no campeonato nacional e nove na Taça de Portugal, mas sem títulos coletivos para abrilhantar o palmarés, o que levou a que a temporada não fosse feliz.
O primeiro título de campeão nacional de Peyroteo chegou em 1940/41, ano em que pouco contribuiu para a vitória no campeonato de Lisboa (só dois golos), mas no qual juntou ao nacional a Taça de Portugal, ganha na final ao Belenenses, nas Salésias, por 4-1. Depois, durante dois anos, os leões só conseguiram ganhar o campeonato de Lisboa, acabando por duas vezes em segundo lugar no Nacional e caindo da Taça de Portugal nas meias-finais. Mas em 1943 chegou ao Sporting Albano, o segundo dos cinco violinos. E a equipa começou a ganhar uma dimensão superior, ganhando desde logo o título nacional. Seguiu-se a Taça de Portugal em 1944/45, também já com Jesus Correia, mas sem Peyroteo na final com o Olhanense, fruto do incidente com o benfiquista Gaspar Pinto num dos jogos da meia-final. Peyroteo já se tinha queixado, em carta enviada à direção do clube, dos métodos pouco ortodoxos utilizados pelo defesa rival para o anular, que segundo ele incluíam “ofensas à honra”. Nesse jogo, a 9 minutos do fim, com o resultado em 3-1 favorável aos leões, essas ofensas ter-se-ão repetido a ponto de Peyroteo esmurrar Gaspar Pinto, sendo de imediato expulso pelo árbitro Vieira da Costa. Foi castigado, impedido de estar na final da Taça, em que o Sporting venceu o Olhanense por 1-0, mas recebeu inúmeras manifestações de solidariedade vindas de todo o país, por carta ou telegrama. E estaria, sim, na final de 1945/46, em que o Sporting venceu o Atlético por 4-2 e ele fez dois golos.
Só depois desse jogo a linha avançada que ficou na história como a dos “Cinco Violinos” ficou completa, com a chegada ao Sporting de Vasques e Travaços. Peyroteo, o mais velho dos cinco, já estava com 28 anos, mas aproveitou bem a companhia, com 43 golos no campeonato que foram recorde da prova até aos 46 feitos por Yazalde em 1973/74. O Sporting ganhou aí o primeiro de três títulos nacionais consecutivos, todos os que os Cinco Violinos jogaram juntos. O segundo viria em 1947/48, época em que Peyroteo deixou que os problemas pessoais começassem a interferir com o seu rendimento desportivo e em que, pela primeira vez, teve um total de jogos superior ao de golos que marcou. A Casa Peyroteo, loja de material desportivo que o craque tinha na baixa lisboeta, estava à beira da falência e o jogador meteu na cabeça que teria de abandonar a carreira para saldar as dívidas com o dinheiro de uma festa de homenagem.
Mesmo tendo o jogador recuperado a veia goleadora na Taça de Portugal, que se jogava no final da temporada (13 golos em cinco jogos, incluindo dois na final, ganha ao Belenenses por 3-1), o Sporting não fez nada para o demover, tendo sido um grupo de sócios a juntar-se para lhe emprestar os 100 contos (500 euros) de que ele precisava para manter as portas abertas. Peyroteo regressou assim para a época de 1948/49, na qual marcou mais 39 golos no campeonato, sendo arma fundamental no tricampeonato. Já não esteve na escandalosa eliminação da Taça de Portugal, aos pés do Tirsense, da II Divisão, o que levou a que o seu último jogo oficial pelos leões tenha sido uma derrota por 5-2 frente ao SC Covilhã, a 27 de Março de 1949, quando o título já era uma certeza matemática, tal era a vantagem ganha antes disso. O último golo pelos leões marcara-o a 6 de Março, num 3-1 ao Vitória FC, ainda que no dia 20 tenha voltado a fazer o gosto ao pé ao serviço da seleção, na que foi a sua última internacionalização, um 1-1 frente à Espanha em Lisboa.
Finda a época, já ninguém demoveu Peyroteo, que abandonou o futebol aos 31 anos, com 331 golos em 197 jogos de campeonato e vários recordes que ainda hoje duram: é o jogador com mais golos na história do campeonato português, o que fez mais golos num só jogo desta prova (nove, num 14-0 do Sporting ao Leça FC, em Fevereiro de 1942) e quem mais vezes marcou ao Benfica (64 golos em 55 jogos contra o rival de sempre dos leões). Fizeram-lhe a festa de despedida a 5 de Outubro de 1949, mas a verdade é que nem assim salvou a loja.
Em Maio de 1956, num Espanha-Portugal em veteranos, sentiu uma dor horrível, a primeira ameaça do calvário que acabaria com a amputação da perna direita devido a problemas de circulação. Antes disso ainda foi selecionador nacional, em 1962. Foi ele, por exemplo, quem lançou Eusébio na seleção, ainda que a ocasião tenha ficado marcada pela vergonha que foi a derrota com o Luxemburgo e tenha desde logo sentenciado o seu futuro como treinador. Peyroteo faleceu com apenas 60 anos, em 1978, vítima de ataque cardíaco, já não sobrevivendo para ver o seu sobrinho-neto, José Couceiro, ser treinador e candidato a presidente do clube do seu coração.