F80 (137): Futre
Driblador extraordinário, velocista inigualável, está na lista dos melhores portugueses de sempre. Jogou nos três grandes, mas foi no FC Porto que mais se destacou, antes de emigrar para Madrid.
Quando o viam abrir os braços, um para cima e outro para baixo, como se fosse um moinho, os adversários já sabiam o que ia acontecer a seguir. Sabiam-no, mas sabiam também que não podiam fazer nada para o evitar. Com um braço bem esticado para cima e o outro em baixo, a garantir o equilíbrio, Futre acelerava e, qual enguia, escapava sempre a quem se lhe opunha, mesmo que o espaço para passar fosse mínimo. Fazia-o graças a uma mudança de velocidade alucinante e a uma finta de corpo irresistível. Se pode haver discussões para definir se ele foi o melhor driblador da história do futebol português, um debate pelo menos está morto à nascença, por ser unânime que foi o mais rápido de todos. Foi esse drible em velocidade, aliado a um espírito de competidor sem igual, que fez de Futre um dos cinco melhores jogadores portugueses de sempre. Um craque ao qual, infelizmente, foi sempre faltando companhia.
Filho de José Paulo, um canhoto que também fazia do drible uma arma nas equipas de escalão secundário que foi representando, Paulo Jorge tornou-se um fenómeno de muito tenra idade. Aos 11 anos, com a camisola dos Estabelecimentos Cancela, foi jogar um torneio da Direção Geral dos Desportos a Alvalade e no Sporting ficaram loucos com ele. Um ano depois já vestia de verde e branco, mais três volvidos, quando tinha 15, assinava o primeiro contrato como profissional. O seu crescimento era o segredo mais mal guardado do futebol nacional. Toda a gente sabia que vinha ali um génio do drible, um miúdo que fez com que os jogos da seleção de juniores passassem a ser avidamente procurados nas páginas dos jornais. A 10 de Maio de 1983, tinha o rapaz acabado de fazer 17 anos há pouco mais de dois meses, Joszef Venglos, que chegara ao Sporting para substituir António Oliveira no lugar de treinador, já a pensar na época seguinte, chamou-o pela primeira vez à equipa principal. A ocasião era um jogo particular com os brasileiros da Portuguesa dos Desportos, marcado a aproveitar uma interrupção do campeonato para um jogo da seleção nacional e uma eliminatória da Taça de Portugal, da qual os leões já tinham sido eliminados. Futre entrou ao intervalo, substituindo Nogueira, mas Venglos não voltou a chamá-lo até final da temporada. O rapaz tinha de esperar.
Depois das férias, contudo, outro galo cantaria. Na abertura da época, a um sábado à noite, o Sporting recebia o FC Penafiel. Ao intervalo, 0-0 e muitas dificuldades dos leões para entrarem na defesa duriense. Venglos decidiu então trocar Festas por Futre e o jogo iluminou-se. No segundo tempo, com uma série de raides do miúdo a desbaratarem por completo a equipa visitante, o Sporting fez cinco golos, acabando por ganhar por 5-1. Depois da estreia, a 27 de Agosto de 1983, Futre voltou a ser suplente utilizado contra o Varzim, o Boavista (mais uma vez entrou ao intervalo para ajudar a virar o jogo de 0-1 para 3-1 em 20 minutos), o Salgueiros e nos dois jogos com o Sevilha FC, relativos à primeira eliminatória da Taça UEFA. Na estreia europeia, a 14 de Setembro, voltou a ser providencial: entrou aos 64 minutos para o lugar de Romeu e, oito minutos depois, o Sporting empatava. Na segunda mão, esteve em campo na última meia-hora, permitindo que os leões virassem de 1-2 para 3-2 e se qualificassem para a ronda seguinte.
O público queria mais Futre e, a 1 de Outubro, Venglos fez-lhe a vontade, dando a primeira titularidade ao rapaz, num 2-0 ao SC Espinho, em Alvalade. Por essa altura, porém, já Futre se tornara o mais jovem internacional português de sempre, superando Chalana, quando Fernando Cabrita lhe deu a primeira camisola com as cinco quinas ao peito: entrou a 32 minutos do fim de uma goleada à Finlândia, em Alvalade (5-0), a 21 de Setembro, mas acabaria por ficar estranhamente fora dos eleitos para jogar a fase final do Europeu’84.
O Europeu de França, ao qual chegou com 21 jogos (e três golos, o primeiro dos quais marcado a Damas, outro ídolo leonino, que a 20 de Novembro de 1983 defendia as redes do Portimonense) na Liga, mais cinco na Taça de Portugal e três na Taça UEFA, podia ter sido a oportunidade ideal para Futre e a seleção estarem na mesma página. Depois, em 1986, o esquerdino do Montijo foi um dos que esteve no Mundial do México, mas a essa equipa já faltavam craques como Jordão ou Chalana. E daí para a frente, à medida que a geração de 1984 se extinguia e antes que aparecesse a geração de ouro, revelada nos Mundiais de sub20 de 1989 e 1991, Portugal foi sofrendo pela incapacidade de juntar valor ao inegável talento de Futre.
Essa foi, de resto, um pouco a história da vida deste jogador, que passou anos no Atlético de Madrid, onde sozinho não era capaz de fazer mais do que aquilo que por lá fez. A exceção foi a passagem de três anos pelo FC Porto, onde Futre chegou no seguimento do quente verão de 1984. O Sporting tinha contratado os internacionais Jaime Pacheco e Sousa ao FC Porto e, face ao investimento que estava a ser feito e ao sucesso que tinha sido a sua primeira época, Futre tinha ido pedir aumento a João Rocha. O presidente leonino, queixou-se mais tarde o jogador, riu-se dele e negou-lhe as pretensões, pelo que Futre recorreu ao expediente então possível da “rescisão por falta de condições psicológicas” e desertou para o FC Porto, deixando mesmo o capitão Manuel Fernandes, que por essa altura lhe dava boleia do Montijo para Alvalade antes de cada dia de treinos, pendurado à espera dele.
No Porto, Futre encontrou uma realidade diferente, muito mais exigente. A equipa técnica liderada por Artur Jorge sabia o potencial que tinha em mãos e desenhou-lhe um plano de aumento muscular que lhe permitiu transformar-se numa máquina de desequilibrar defesas muito mais consistente. Otávio Machado, o treinador adjunto, controlava-o com rédea curta, domando-lhe a rebeldia que era normal aos 18 anos. E ao contrário do que acontecia no Sporting, onde chegou a falar-se na hipótese de o emprestar à Académica, para rodar, no FC Porto Futre era titularíssimo: começou de início todos os 43 jogos que os dragões fizeram nessa época, marcando ao todo 10 golos – seis na Liga. O campeonato foi um passeio para o FC Porto, que o acabou na frente, com oito pontos de avanço sobre o Sporting, a única equipa à qual os dragões não conseguiram marcar golos. E, além de marcar na vitória sobre o Benfica que valeu a conquista da Supertaça, Futre jogou também contra os encarnados a sua primeira final da Taça de Portugal. Fez um golo, de penalti – ele que os penaltis costumava sofrê-los e não marcá-los – mas nessa tarde o Benfica vingou-se de uma época muito infeliz e ganhou por 3-1.
A carreira de Futre no FC Porto foi um acumular de sucessos. Na segunda época voltou a ser campeão, marcando inclusive o golo do título, na penúltima jornada: ao mesmo tempo que o Sporting ganhava ao Benfica na Luz, o FC Porto vencia em Setúbal, por 1-0, com um grande golo de Futre, e ultrapassava os encarnados na tabela. E a terceira, mesmo tendo perdido a Liga, na qual marcou dez golos, foi a da conquista da Taça dos Campeões Europeus, na final contra o Bayern que ficou famosa pelo calcanhar de Madjer mas que também podia tê-lo ficado por um raide fenomenal de Futre, a vir da linha lateral do lado direito até à presença do guarda-redes Pfaff, depois de fintar vários adversários. O remate, no entanto, saiu ao lado, levando a que Futre tivesse contribuído com apenas dois golos na vitória europeia (ao Vitkovice e ao Dynamo Kiev).
Finda a época, ainda assim, o FC Porto acabou por ceder ao dinheiro que vinha do estrangeiro e vendeu-o ao Atlético de Madrid, por 650 mil contos (3,2 milhões de euros). Em Madrid, onde manteve uma relação de amor-ódio com o presidente Jesus Gil y Gil, foi desde cedo o maior ídolo da afición. Mesmo antes de jogar: teve cinco mil pessoas a recebê-lo, numa discoteca da capital espanhola, e tornou-se capitão de equipa e principal estrela do Atlético. Oito golos na primeira Liga espanhola, um deles numa memorável vitória por 4-0 frente ao Real, no Santiago Bernabéu, terão ajudado Futre a ser o segundo na votação da France Football para a Bola de Ouro de 1987. Perdeu apenas para o holandês Ruud Gullit, que beneficiava de jogar numa equipa mais forte.
Em Madrid, porém, tudo o que Futre conseguiu ganhar foram duas Taças do Rei. Mesmo que lhe tenha dado um prazer particular a que venceu na final frente ao Real, outra vez no Santiago Bernabéu, a relação com Jesus Gil deteriorava-se com frequência. E Futre quis voltar a Portugal. Em Janeiro de 1993, convocado por Carlos Queiroz para representar a seleção num jogo com Malta, reuniu com Sousa Cintra, à data presidente do Sporting, que queria fazê-lo regressar ao clube onde nascera. Disse que sim, mas à ultima hora acabou por se comprometer com o Benfica, pelo qual se estreou a 14 de Fevereiro, substituindo Rui Águas a 32 minutos do fim de uma vitória por 1-0 sobre o Famalicão. Para a história ficar completa, a 21 de Março marcou o único golo que fez em toda a carreira ao Sporting, ainda por cima a decidir um dérbi na Luz (1-0). Apesar de tudo, o Benfica não ganhou esse campeonato: Futre despediu-se da Liga portuguesa com um golo, nos 5-1 ao Belenenses, a 6 de Junho de 1993. Tudo o que a super-equipa que contava com Futre, Rui Costa, Paulo Sousa, João Pinto, Isaías, Paneira ou Mozer conseguiu foi uma Taça de Portugal, em cuja final, jogada quatro dias depois, o montijense marcou dois golos, ajudando ao festival ofensivo que foram 5-2 ao Boavista. Foi o último jogo que fez pelo Benfica, que pouco depois entrava em colapso financeiro, vindo a perder vários jogadores, entre eles Sousa e Pacheco para o Sporting. Para Futre, seguiu-se a Liga francesa, onde assinou pelo Olympique Marselha.
Mas a carreira de Futre entraria nessa altura nos momentos de maior instabilidade, à qual não terá sido estranho o facto de ter começado a sofrer de um joelho. Essa não foi, porém, a única causa do declínio. Percebendo que estava num clube ameaçado pela justiça, passou apenas quatro meses em Marselha, assinando pela Reggiana, de Itália, em Novembro de 1993. Na estreia na Serie A, porém, contra a Cremonese, sofreu uma lesão grave depois de marcar um golo. Ainda fez 13 jogos no campeonato de 1994/95, durante o qual teve de submeter-se a nova operação ao joelho, que repetiu em 1995/96, depois de, mesmo assim, ter assinado pelo Milan. Ali, Fabio Capello fê-lo jogar como titular na última partida da época, um 7-1 à mesma Cremonese que lhe assinalara a estreia em Itália, permitindo-lhe juntar o nome à lista dos campeões. Futre, porém, já não tinha condições físicas para render no futebol italiano. Assinou pelo West Ham, modesto clube inglês que só fica ligado à sua história por ele se ter recusado a jogar na partida de estreia se não lhe dessem a camisola número 10, que pertencia a Moncur. Emigrou para o Japão, onde ainda ajudou o Yokohama Flugels a ganhar a Taça do Imperador. E acabou a carreira com um regresso surpresa ao Atlético Madrid, onde no entanto Radomir Antic nunca lhe deu a titularidade, utilizando-o apenas como suplente nalgumas partidas.
O último jogo fê-lo uma semana antes de completar 32 anos, a 23 de Fevereiro de 1998, substituindo Pantic a oito minutos do fim de uma vitória por 2-1 sobre o Real Saragoça. Tornou-se diretor no Atlético, fruto da sua boa relação com Miguel Angel Gil Marín, filho de Jesus Gil; foi cronista de jornais e comentador de televisão e regressou à ribalta em Portugal quando apareceu ao lado de José Dias Ferreira como diretor para o futebol na candidatura do advogado à presidência do Sporting. Perderam as eleições, mas a rábula do “sócio” e dos “charters de chineses” mostraram aquilo que para muitos era uma evidência: mesmo tendo jogado à vez por Sporting, FC Porto e Benfica, Futre nunca deixou de ser uma das figuras mais queridas dos adeptos do futebol em Portugal. É atualmente comentador desportivo.
Futre: “Diziam que eu era um jogador de grandes jogos”
AT: Qual foi o jogo da tua vida?
Futre: O mais completo foi o Benfica-Boavista, na final da Taça de Portugal de 1993. Mas também destaco a final da Taça dos Campeões Europeus de 1987, que o FC Porto ganhou ao Bayern, e a final da Taça do Rei de Espanha de 1992, em que o Atlético Madrid bateu o Real Madrid, eu fiz um golo e, como era o capitão de equipa, recebi a taça das mãos do rei Juan Carlos. Foram jogos muito importantes, de alta pressão. Foram três finais. E diziam que eu era um jogador de grandes jogos.
AT: E o colega mais talentoso com quem jogaste?
Futre: Sem dúvida, o Madjer. Era inacreditável. Eu fiquei espantado a olhar para ele logo no primeiro treino, porque não o conhecia. Era um jogador completo. E atenção que joguei com muito bons jogadores.
AT: Por fim, qual foi o adversário mais complicado que apanhaste pela frente?
Futre: Em Portugal, o Veloso e o Pietra, que eram duas carraças terríveis. Em Espanha, o Chendo, com quem tive duelos extraordinários. Umas vezes ganhava eu, outras vezes ganhava ele... Apanhei jogadores mais agressivos, mas ele foi o mais difícil, porque era um lateral muito inteligente.
No 28 de fevereiro só podia ser o Futre!