F80 (1): O futebol chega a Portugal
Não há consenso acerca dos primeiros futebolistas que Portugal conheceu. Crê-se que foi na Madeira, obra de ingleses. Certo é que o primeiro Porto-Lisboa se jogou em 1889.
A polémica marca o futebol desde o nascimento. Se não há ninguém capaz de assegurar onde surgiram as raízes do jogo, se na China ou em Itália, se na Nova Guiné ou na Grécia, muito menos é possível garantir quem trouxe a semente para Portugal. Os candidatos mais credíveis são o inglês Harry Hinton, aparentemente o dono da primeira bola de futebol a ser pontapeada em solo lusitano, à entrada para o último quartel do século XIX, na Madeira, e os irmãos Pinto Basto, estudantes em Inglaterra, que uns anos mais tarde transportaram também um esférico para diversão exclusiva de viscondes, marqueses e outros rapazes da alta sociedade, todos a transbordar ócio nas longas férias de Verão que duravam até Outubro.
Ao contrário de Hinton, os Pinto Basto jogaram futebol de uma forma organizada, com equipas e regras. Contudo, mesmo entre estes – e eram muitos, os varões da família – não havia, anos depois, unanimidade acerca de quem trouxera a primeira bola e de quem primeiro lhe dera uso: a versão mais consensual garante que só a segunda bola foi usada e que a original foi guardada como tesouro, atrás de uma vitrina. Absolutamente seguro, porque foi noticiado nos jornais, é que o primeiro jogo de futebol a sério ocorreu em 1889, nos terrenos onde três anos depois foi erguida a Praça de Touros do Campo Pequeno, em Lisboa. Nele, uma equipa de portugueses bateu outra de ingleses por 1-0. Para aí chegar, contudo, o futebol nacional teve de percorrer um longo caminho.
A mais antiga referência ao jogo em Portugal data de 1875 e vem da Madeira. Harry Hinton era um jovem britânico que, como todos os de boas famílias, ia estudar à mãe pátria. Aos 18 anos, entusiasmado com o sucesso da já emergente Taça de Inglaterra (a primeira edição data de 1872), veio de férias e trouxe uma bola. De acordo com a lenda consagrada por um monumento mais tarde edificado no Largo da Achada, na Camacha, ali se entreteve a explicar as regras do jogo aos amigos, quase exclusivamente britânicos, e a envolvê-los em futeboladas acolhidas com entusiasmo.
Há relatos de diversões com bola envolvendo marinheiros britânicos em Lagos, no Algarve mas, sendo impossível atestar da sua veracidade ou sequer situá-los no tempo, admite-se que os primeiros a pontapear uma bola de futebol em Portugal tenham sido Hinton e os seus amigos. E de tal forma o fizeram que o jovem Hinton foi forçado a adiar sucessivamente as expedições de pesca desportiva que gostava de fazer à Noruega ou à Escócia, bem como as caçadas em que se envolvia nas Ilhas Desertas. Até que, gasta pelo uso – também não se sabe bem quando nem como –, a bola de Hinton rebentou, forçando um hiato na prática do jogo na ilha.
Anos mais tarde, diz Mota de Vasconcelos no “Almanaque do Desportista Madeirense” que em 1884 ou 1885, ter-se-á efectuado no Campo D. Carlos, mais tarde baptizado Campo de Almirante Reis, aquele que foi o primeiro desafio a sério na ilha, entre os tripulantes de um barco inglês que aportara ao Funchal – o “Rhouma” é uma hipótese credível – e membros da extensa colónia britânica residente na Madeira. Os primeiros traziam a bola e tê-la-ão deixado a um comerciante marítimo com quem estabeleciam contacto frequente: João Viveiros, conhecido de todos como “Chicago”.
O futebol ganhou tal adesão que depressa se tornou um fenómeno de massas: britânicos a correr atrás da bola, madeirenses divertidos a ver. E, com olho para o negócio, o “Chicago”, percebeu que tinha ali uma mina de ouro: passou a alugar a bola que tinha à sua guarda a 10 reis à hora a marítimos que se entretinham a pontapeá-la no Campo D. Carlos ou, mais a Leste, no Campo das Loucas. Contudo, aquele que foi o primeiro empresário de futebol em Portugal levou o engenho e a arte tão longe que matou a galinha dos ovos de ouro: quando a sua bola também rebentou, lembrou-se de lhe substituir o interior de “cautchou” por uma bexiga de porco, adquirida no Matadouro Municipal. Os clientes perceberam o truque e passaram eles mesmos a fazer bolas com trapos ou bexigas amarradas e metidas dentro de meias. Podia não ser tão genuíno como o futebol a sério, mas ficava muito mais barato.
O “association” em Lisboa
Por essa altura já o futebol se praticava de forma mais organizada em Lisboa, onde chegou pela mão dos irmãos Pinto Basto. Conta-se que o mais velho, Guilherme, terá trazido uma bola em 1884, mas que a remeteu à condição de tesouro, para ser exposto e não pontapeado. E só quando, quatro anos mais tarde, Eduardo e Frederico regressaram também do Downside College, com outra bola entre roupas, livros escolares e romances policiais, é que o desporto pôde ser praticado, em Belas, onde a família estava de férias estivais.
“Os meus irmãos não descansaram enquanto não arranjaram dois ‘teams’ para disputar um encontro. Em Belas estava também a família do Marquês de Borba e foi precisamente num pátio que existia na casa desse amigo de meu pai – o pátio do Bonjardim – que, em Setembro de 1888, se efectuou o tão ansiado desafio, com a colaboração, até, de meu pai e do Marquês de Borba”, relatou, 60 anos mais tarde, Guilherme Pinto Basto, já na altura o único sobrevivente de todos os irmãos, a “A Bola”.
Apesar de ser tido por muitos como o principal introdutor do jogo da bola no país – muito por força dos sucessivos cargos dirigentes que foi desempenhando daí para a frente –, Guilherme dizia que os maiores entusiastas eram mesmo os irmãos: “A minha predilecção ia sobretudo para o ténis, de que cheguei a ser campeão, e para a caça”.
De Belas, o futebol foi com a família Pinto Basto para a Parada, em Cascais, chegando no Inverno seguinte a Lisboa. Em boa verdade, qualquer dos momentos pode ser escolhido para assinalar a estreia do “association” organizado no país. Do primeiro ensaio – assim se chamavam os treinos, na altura –, em Outubro, na Parada, há mesmo uma fotografia, imortalizando os jogadores que nele participaram.
Foram 22 os pioneiros, que antes de jogar tiveram que andar a tirar as pedras do terreno. Todos figuras da alta sociedade, entre irmãos, primos e amigos, eram eles: João Bregaro, Jorge Figueira, Eduardo Romero, Francisco Alte, Eduardo Pinto Basto, Francisco Figueira, Salvador da França, Manuel Salema, conselheiro Aires de Ornelas (mais tarde importante na reacção militar monárquica à implantação da república), Guilherme Pinto Basto, Carlos Pinto Basto, Salvador Asseca (Visconde de Asseca), António Avilez, Pedro Sabugal, Frederico Pinto Basto, D. Simão de Sousa Coutinho (Borba), Augusto Moller, Vasco Sabugosa (Conde de S. Lourenço), Francisco Avilez, Hugo O’Neill, Luiz Trigoso e Visconde de Castelo Novo.
Na foto que existe do acontecimento, contudo, surgem 23 pessoas. E notícias há que referem 28 nomes, acrescentando aos dos 22 já citados os de Francisco Trigoso, Afonso Vilar, Duarte Pinto Coelho, Fernando Pinto Basto, Henrique Vilar e João Saldanha Pinto Basto.
Do primeiro jogo a sério, no Campo Pequeno, a 22 de Janeiro de 1889, há notícias nos jornais, prenhes de reportagem social, pela quais era possível perceber que o futebol era mesmo o parente masculino do chá e dos “scones”. “No campo viam-se bastantes cavaleiros e numerosas carruagens, sendo dignas de menção, entre as mais notáveis equipagens, o elegante ‘Phaeton’, de Madame Blanc, gentilmente governado por sua interessantíssima filha; o magnífico ‘vis-a-vis’ do senhor Eduardo Van-Zeller e o formosíssimo ‘Brooham’, do senhor Carlos Eugénio de Almeida”, lia-se numa notícia onde não era sequer referido o resultado da peleja. No fim, ganharam os portugueses por 1-0, tendo o golo nascido logo na primeira parte.
O entusiasmo pelo futebol foi crescendo e, naturalmente, alargou-se ao resto do país. No Porto, José Beires Valle e os irmãos Azevedo Campos, também estudantes em Inglaterra, fizeram figura de pioneiros e encontraram noutros membros da vasta colónia inglesa que se reunia no Campo Alegre, no Oporto Crickett and Lawn Tennis Club, um grupo de praticantes assíduos. Faltava uma colectividade que generalizasse a prática do jogo, até que, em 1893, António Nicolau de Almeida, jovem negociante de vinho do Porto, regressou de uma viagem de negócios a Inglaterra com bolas, botas e muitas ideias. Nicolau de Almeida era um homem de acção rápida: a 8 de Outubro de 1893, no Hipódromo de Matosinhos, organizou o encontro inaugural do Foot-Ball Clube do Porto, acontecimento mais tarde recuperado por Rui Guedes para levar a Assembleia Geral do FC Porto a recuar uns bons anos a data de fundação do clube até aí tida como boa (1906).
Ultimato inglês e a primeira Taça
Havia, contudo, uma ameaça séria ao futebol em Portugal. O jogo vinha de Inglaterra, adoptava inúmeras expressões anglófonas e em Portugal, desde 1890, data do ultimato com que a coroa britânica respondeu às pretensões portuguesas de manter controlo sobre as terras do interior africano, entre Angola e Moçambique, viviam-se tempos de ódio a tudo o que soava a inglês ou tinha algo a ver com a “pérfida Albion”. A coroa portuguesa cedeu às pretensões coloniais britânicas, mas a opinião pública não. Guerra Junqueiro escreveu “Finis Patriae”, Alfredo Keil compôs a versão original de “A Portuguesa”, onde não se marchava contra os canhões mas sim contra os bretões.
O rei D. Carlos, contudo, era um diplomata de vistas largas: não se deixava levar pelos ódios populares e gostava de futebol. Diz-se mesmo que frequentemente saía do Palácio da Ajuda e demandava a Belém, para assistir aos treinos daqueles que em 1890 haveriam de fundar o Foot-Ball Clube Lisbonense. Daí que, um dia, tenha mandado chamar Guilherme Pinto Basto para lhe pedir que trocasse a ideia que sabia que este acolhera de Nicolau de Almeida – a de um encontro entre o Foot-Ball Clube Lisbonense e o Foot-Ball Clube do Porto – por um desafio entre representações das duas cidades, para o qual estava na disposição de oferecer uma taça. Desde que pelo menos seis membros de cada onze fossem portugueses. Ainda hoje se discute se D. Carlos terá sido capaz de antever as capacidades aglutinadoras e ao mesmo tempo entorpecedoras de agitação social do futebol.
Tudo nascera de uma carta enviada por Nicolau de Almeida, presidente do Foot-Ball Clube do Porto, a Guilherme Pinto Basto, na sua qualidade de presidente do Foot-Ball Clube Lisbonense, a 25 de Outubro de 1893: “Desejando solenizar a definitiva instalação do Foot-Ball Clube do Porto, resolvemos organizar um ‘match’ quarta-feira próxima, 2 de Novembro, no qual tomasse parte um ‘eleven’ do ‘team’ do clube a que V. Exa. tão dignamente preside”, escrevia Nicolau de Almeida. A carta veio noticiada a 29 de Outubro, no “Diário Illustrado”, já com resposta de Pinto Basto: convite aceite, mas lá mais para a frente, que uma equipa e uma deslocação tão complicada não se preparam numa semana.
Após a intervenção régia, o jogo teve mesmo lugar. Em 2 de Março de 1894, integrado nos festejos do quinto centenário do nascimento do Infante D. Henrique, que atraíram mais de 40 mil visitantes ao Porto, jogou-se a primeira partida entre Porto e Lisboa. A família real completa – além do rei, lá estiveram a rainha D. Amélia e os príncipes D. Luís Filipe e D. Manuel – marcou presença no Campo Alegre, embora a inauguração da exposição colonial, no Palácio de Cristal, e a sessão solene no Teatro de Gil Vicente a tenha levado a chegar já a meio da segunda parte, onde foi vitoriada pela assistência. “Principalmente por ingleses”, como se lia no já pró-republicano “O Século”. O atraso da família real levou a que, “para que suas majestades pudessem apreciar devidamente a destreza dos dois grupos”, os “lutadores” (como lhes chamava o “Comércio do Porto”) ou “campeadores” (como a eles se refere “O Século”) lhes tenham oferecido um prolongamento de dez minutos, sem interferência no resultado final, que foi de 1-0 a favor de Lisboa.
O “Comércio do Porto” foi o único jornal a fazer o relato detalhado do jogo onde, embora sem mencionar o autor do golo que deu a vitória aos lisboetas e a totalidade da constituição da equipa do Porto, deixa os nomes dos participantes, já organizados no 2x3x5 que era a táctica da moda na altura. Assim, por Lisboa, de branco e vermelho, jogaram: Guilherme Pinto Basto; Keating e Locke; Clyde Barley, Valentim Machado e João Ribeiro Pereira; Artur Paiva Raposo, Afonso Vilar, Thompson, Pittusk e Carlos Vilar. Pelo Porto, vestidos de branco, estiveram MacGeock; A. Nugentt e F. Guimarães; Alfredo Kendall, Eduardo Kendall, Mackechnie, MacMillan e Ponsonby. Dos três médios, não reza a história. Quem sabe se o Porto não perdeu o jogo por falência a meio-campo.
Guilherme Pinto Basto recebeu e guardou a Cup d’el Rei, como foi apelidada a taça de prata que serviu para assinalar o primeiro evento verdadeiramente competitivo do futebol português, para mais tarde a entregar ao Clube Internacional de Foot-Ball (CIF), tido como sucessor do Lisbonense. Pela mão do monarca que haveria de ser assassinado 14 anos depois, o futebol português ganhava verdadeira dimensão nacional. Mas o caminho a percorrer ainda foi longo.
Este artigo faz parte da série F80, destinada a celebrar o centenário das competições de futebol em Portugal, em 2022. Por aqui passarão biografias de jogadores, sempre em dia de aniversário, e a história de todas as épocas desde esse primeiro Campeonato de Portugal. Os primeiros nove artigos serão de leitura livre. A partir de 7 de Novembro, para aceder aos conteúdos desta série, terá de se tornar assinante-pagante.