Está sempre zero a zero
O segredo das grandes equipas passa pela capacidade de encarar cada lance como se fosse simultaneamente o primeiro e o último de um jogo. Há que desbloquear o resultado e que o decidir sem remissão.
Jogar cada momento do jogo como se ele estivesse empatado a zero é uma capacidade que só as melhores equipas têm. Os fracos tendem a esmorecer quando são atingidos no âmago por golos adversários que os façam duvidar de si mesmos ou a abrandar sempre que se veem mais à larga no resultado, entrando em exercícios de comiseração maravilhada que os levam a fugir à aplicação do instinto assassino e a acabar com o adversário. O Real Madrid é a grande equipa por excelência e voltou a mostrá-lo em Anfield Road. Não foi só pela forma como desfez o Liverpool FC, ganhando frente ao mítico Kop por 5-2. Foi porque o fez após apanhar com dois golos nas trombas em menos de um quarto de hora, o primeiro com nota artística no vistoso calcanhar de Darwin e o segundo a cheirar a concessão, na forma como Courtois, o herói da última final, deixou a bola bater-lhe no joelho depois de a controlar no peito e ficar à mercê de Salah para o 2-0. Dar dois golos de avanço em Anfield Road seria a morte da maior parte das equipas, mas não do Real Madrid, que ressuscitou com um bis de Vinicius Júnior. Primeiro, meteu um remate cruzado no único centímetro quadrado das redes de Alisson em que a bola podia entrar e, depois, limitou-se a estar lá, virando até as costas ao pontapé do guardião contrário, de forma a que a bola lhe batesse e tomasse o sentido das redes. Dois-a-dois, com uma hora de jogo para disputar e, sobretudo, com mais hora e meia no Bernabéu. Se há nove meses, por alturas da final de Paris, o Liverpool FC e o Real Madrid eram duas das equipas em melhor momento no futebol europeu, neste momento não são. E se este desfiar do novelo da primeira parte conduziu os ingleses da euforia a uma apreensão irrecuperável, não levou os espanhóis à autocontemplação. A experiência dos seus jogadores levou o Real Madrid a entrar para a segunda parte como se o jogo estivesse empatado a zero, mas não à cautela advogada na canção de Carlos Paião. “Com zero-a-zero, vai tudo bem”? Qual quê? Ao zero-a-zero, vai-se para cima do adversário. Em dez minutos da segunda parte, entraram mais dois golos, um de Militão, após livre de Modric, a punir a passividade de uma linha defensiva estranhamente imóvel e encostada à linha de golo, outro de Benzema, este com alguma sorte no ressalto. E aqui, o que disseram os jogadores madrilenos uns aos outros? Pois sim, mais uma vez a letra do Paião. “Há zero-a-zero”. Fala-se da intensidade e do poder físico da Premier League, mas foi o veterano Modric, 37 anos, quem meteu uma corrida com bola em transição, a superar todos os duelos que lhe apareceram pela frente antes de deixar Vinicius soltar o bis de Benzema. Os 5-2 mataram a eliminatória? Ancelotti diz que não. Klopp é mais realista: “Ele acha que sim, mas não o diz. Eu também acho, mas à medida que a hora do jogo se aproxima as nossas hipóteses vão aumentando”. O segredo? Convencer os jogadores de que está zero-a-zero. Sempre. Mesmo que eles cheguem ao Bernabéu e marquem três golos de rajada vai faltar sempre mais um.
Os riscos do sobre pensamento. No fundo, o segredo é não pensar. Não pensar muito, pelo menos. Em Chaves, por exemplo, Pedro Gonçalves pensou demais – e a culpa nem foi dele por inteiro, mas sim de quem o terá metido neste berbicacho. As dificuldades sentidas pelo Sporting para obter um resultado que fez por justificar na produção de jogo começaram no recuo do seu melhor marcador no momento do segundo penalti, que podia ter sido do hat-trick para ele e do 4-1 para os leões. Fechava o resultado, que acabou em 3-2 e à mercê de um azar. Pedro Gonçalves, no entanto, deu esse penalti a Chermiti, que o falhou. E é aqui que entra o contexto. Há três semanas, em Alvalade, com 4-0 ao SC Braga, Pedro Gonçalves não cedeu um penalti a Esgaio ou a Chermiti, conforme estava a ser reclamado pelas bancadas, e foi apupado pelos adeptos enquanto chutava para o 5-0 final. Rúben Amorim, que até chegou a mandar uma garrafa de água ao chão em sinal de irritação pela intransigência do jogador, depois recuou e reconheceu que ele tinha mesmo sido “o único adulto” na situação. Segundo episódio: na quinta-feira, após uma exibição fraca e um empate caseiro com o Midtjylland, houve assobios das bancadas e alguma revolta dos jogadores face ao público. “[A falta de confiança e de apoio] Vai-se sentindo dia após dia”, queixou-se o mesmo Pedro Gonçalves no final, acicatando ainda mais os adeptos que, já se sabe, levam sempre estas coisas a peito. “Então estes gajos não jogam nada e agora a culpa é nossa?”, leu-se por aí, nas redes sociais. O terceiro episódio só sou capaz de o intuir, não posso garantir que tenha acontecido, e mete alguém da estrutura leonina a aconselhar Pedro Gonçalves a fazer as pazes com os adeptos, a estender-lhes a bandeira branca de forma a evitar problemas futuros. Resultado: após uma vitória (e uma excelente exibição no plano pessoal) em Chaves, Pedro Gonçalves foi à flash-interview como homem do jogo e fez o que lhe terão pedido, logo a abrir, não fosse depois o entusiasmo discursivo levá-lo a esquecer-se dessa recomendação. Perguntaram-lhe sobre o regresso a Trás-os-Montes, de onde é natural, e ele atalhou: “Antes de mais, foi um excelente jogo da equipa. Tivemos um excelente apoio nas bancadas, como em todos os jogos”, disse. E até aí, tudo bem. O problema é quando o sobre pensamento interfere no jogo. “Se é para fazer as pazes com os adeptos, deixa-me lá dar o penalti ao miúdo, que eles ficam felizes”, terá pensado Pedro Gonçalves, negando o primeiro mandamento do que significa ser grande. Lembram-se? Está sempre zero-a-zero.
História na Nova Zelândia. Portugal acaba de conseguir o histórico primeiro apuramento para a fase final de um Mundial feminino, ganhando por 2-1 aos Camarões, na Nova Zelândia, no último desafio dos playoff de acesso à competição. Foi uma manhã diferente para quem viu o jogo, com os gritos estridentes das jogadoras a imporem-se ao ambiente de um estádio que estava semi-vazio, ao silêncio que impera na casa de cada um pelas horas em que a partida se iniciou ou ao pequeno-almoço tomado em família, para quem ainda se dá a esse luxo. Mas as sensações foram as de sempre, com as dificuldades sentidas pela seleção nacional para fazer passar para o resultado uma superioridade que pareceu sempre natural. Portugal não ganhou só porque é melhor equipa do que os Camarões. Portugal é muito melhor equipa do que os Camarões. Mas as bolas nos ferros, as ocasiões falhadas, a dificuldade que qualquer equipa portuguesa sente para ser concreta quando é preciso e a tremedeira final quando as africanas se agigantaram frente à meta e empataram levaram a que o risco do prolongamento fosse real. Um penalti de VAR trouxe justiça já no tempo de compensação e a certeza de que a seleção feminina caminha no sentido correto. Mesmo sendo portuguesa na incapacidade de jogar sem pensar demasiado.