E o resto são cantigas
Rui Costa cantou nas bancadas, mas o mais relevante ali foi perceber como o Benfica deu a volta a um jogo que estava mal-parado. Qual é a pergunta que uma equipa faz a si mesma nesta altura?
A imagem que fica na retina dos benfiquistas que viram o jogo de Bruges pela televisão é a de Rui Costa a cantar “Até morrer”, já perto do final, com o 2-0 a tranquilizar toda a gente, como se percebe pelas gargalhadas plenas de felicidade despreocupada de Fernando Seara, Diamantino Miranda e Carlos Manuel, que rodeavam o presidente. Mas o jogo com que o Benfica praticamente arrumou a questão da passagem aos quartos-de-final da Liga dos Campeões não foi tão ligeiro como uma cantiga: foi um desafio entre duas equipas de potenciais diferentes, sim, ainda por cima com uma delas a procurar sair de uma fase bastante negra, mas teve trabalho. Alturas houve, durante a primeira parte, em que as coisas pareciam mal-paradas para os lados da Luz. Scott Parker, o recém-nomeado técnico da equipa belga, mandou os laterais encostarem nos médios ofensivos do Benfica, não se importando que estes os arrastassem para dentro, porque ao mesmo tempo dava corda às chuteiras dos extremos, Sowah e Buchanan, para seguirem os laterais encarnados. Como o ponta-de-lança, Lang, raramente aparecia na sua zona, mas sim a criar desequilíbrios noutros locais, isso permitia ao FC Bruges encontrar saída da pressão que o Benfica lhe tentava fazer à primeira fase de construção e entrar embalado e com qualidade em situações de igualdade numérica pelo meio-campo ofensivo adentro. A questão que uma equipa – ou um treinador, se a equipa não tiver maturidade suficiente para o compreender – deve perguntar a si mesma por estas alturas é sempre a mesma: “onde é que sobra gente?” Ao Benfica começou a sobrar gente no trio de trás, porque a partir de certa altura passou a faltar o gás a Sowah e Buchanan para o vai-vem e a junção de Chiquinho aos centrais para o início de construção não encontrava em Lang e Vanaken oposição suficiente. Foi a partir dali que o Benfica levou o jogo para onde lhe interessava, que era para o meio-campo ofensivo, para longe daquilo a que Roger Schmidt chamou a “red zone”, a zona vermelha, onde ninguém gosta de defender. E, depois, era só esperar que da frequência com que estava na frente nascessem as situações para se adiantar. Algumas, falhou-as. Duas delas deram golo. Deve chegar para gerir a segunda mão já a pensar no adversário que se segue.
As chances portuguesas. É curioso que raramente se pergunte – e que quando a pergunta é feita ainda mais raramente os treinadores lhe respondam com detalhe – como é que uma equipa deu a volta ao texto. Ontem, no final do jogo, Roger Schmidt disse que gostou do facto de o Benfica ter “sentido dificuldades no início”. “Porque fomos capazes de mudar”, explicou. “Às vezes temos um plano, mas o do adversário é melhor e temos de o aceitar e de encontrar soluções”, afirmou ainda o alemão. Mas que soluções? O que mudou entre os 20 minutos de dificuldade e os 70 de domínio? Como se alterou o jogo? Isso já deve ser querer saber demais, porque a cultura do soundbyte leva-nos a todos imediatamente ao próximo TikTok e à busca esperançosa de uma frase que dê um título chocante. E vem a pergunta: “o Benfica pode ganhar a Champions?” Schmidt só tinha de dizer que sim para fazer a felicidade de toda a gente. Ao invés, riu-se. E não foi uma gargalhada de felicidade incontida, como as de Carlos Manuel e Fernando Seara quando viram Rui Costa a cantar. Foi mais uma forma de conjugar a felicidade de uma vitória justa com o enfado que em situações normais e não escrutinadas poderia levá-lo a dizer: “Não me chateiem com isso agora”. Se o futebol é o momento, a Liga dos Campeões é-o ainda mais. Uma equipa que está mal hoje pode estar bem daqui a três semanas, data da segunda mão – e daí a importância do segundo golo em Bruges, porque dá uma almofada de conforto mais robusta para o segundo jogo. E pode estar muito bem lá para Abril, que é quando se jogam os quartos-de-final, com os oito apurados em pé de igualdade. Aí não dá para gerir vantagens... Ainda assim, deixem-me dar-vos um banho de realidade: só uma conjugação fantástica de sorteios pode levar uma equipa portuguesa a ganhar a Liga dos Campeões. Minimamente acessíveis, haverá o vencedor do Tottenham-Milan, porventura o ganhador do Chelsea-Borussia Dortmund (se o Chelsea não acertar daqui até lá) e quem sair vivo do duelo Eintracht Frankfurt-Nápoles, mas só se os italianos caírem muito na segunda metade da época. Se o FC Porto passar o Inter, se o Benfica eliminar o FC Bruges, se depois cada um dos dois apanhar uma destas equipas nos quartos-de-final e jogarem um com o outro na meia-final, poderemos ter uma equipa portuguesa na final. É pedir muito?
Martínez e Bernardo Silva. Não vi ainda (mas quero ver) o Arsenal-Manchester City de ontem, aparentemente uma masterclass tática de Bernardo Silva, convertido por Pep Guardiola num 12º homem dos citizens, pois aparentemente terá jogado pelo corredor central, mas com a incumbência de fechar o lado esquerdo como lateral quando o Arsenal tinha a bola. Foi o tal homem que sobra e teve de trabalhar para isso... E se digo que aparentemente terá jogado assim, é porque, além do resumo, só vi, do jogo, um clip de 70 segundos preparado para a Amazon Prime TV por Roberto Martínez, ele mesmo, o selecionador de Portugal, a fazer no serviço de streaming aquilo que o Rui Malheiro tão bem fazia na RTP depois dos jogos do Mundial: um clip com círculos, riscos, setas e zonas iluminadas, a explicar a importância tática deste ou daquele jogador e desta ou daquela movimentação, ontem centrado no tal papel híbrido de Bernardo Silva. É possível que o contrato que liga Martínez à FPF lhe permita estas liberdades, pois ele sempre trabalhou para a Amazon enquanto era selecionador da Bélgica. E, francamente, não tenho nada contra. Só a favor. Aliás, como me agradou ver o selecionador nacional a falar de futebol mesmo, de futebol de verdade, já anseio pelas conversas que certamente poderemos vir todos a manter com ele quando a bola começar a rolar para as seleções. Porque o homem sabe falar de futebol, sem tabus e sem se esconder em lugares-comuns. Só é preciso ele querer e a malta ir além da pergunta sacramental: Portugal pode ser campeão do Mundo?