Decidir na ressaca
O Benfica defronta hoje um Inter em crise, mas fá-lo na ressaca de uma derrota impactante, contra o FC Porto, e sem o estabilizador emocional que é o capitão Otamendi, castigado.
O Benfica enfrenta hoje mais um “jogo do ano” e fá-lo debaixo da dupla ameaça que vem da incerteza nascida da demonstração de impotência dada frente ao FC Porto, na sexta-feira, e da ausência de Otamendi, o capitão, o líder em campo, cuja importância foi individualizada ontem por Roger Schmidt, na conferência de imprensa de antevisão da primeira partida com o Inter. É importante não deixar a equipa entrar em estados de alma mais ansiosos, porque se a derrota (1-2) contra o FC Porto nasceu, em grande parte, de uma superior adaptabilidade estratégica do adversário face a uma equipa que acreditava tanto no seu processo que não lhe passava sequer pela cabeça mudar fosse o que fosse nele, não é normal que agora, depois de um jogo mal conseguido, de uma derrota que adia mas não impede, por si só, a conquista do campeonato, essa mesma equipa comece a achar no seu íntimo que tem de alterar tudo, porque já foi descoberto o segredo para lhe contrariar o modelo de jogo. Na verdade, não há segredos. E não há segredos duplamente. Não há segredos porque há muito se sabia como contrariar o modelo do Benfica, que não é único em nada a não ser na interpretação que lhe é dada pelos seus jogadores – o FC Porto foi simplesmente corajoso e muito competente na forma de o fazer. E não há segredos porque há muito se sabe também que nestas alturas de dúvida é que fazem mais falta os líderes, os capitães que dão um grito, que aglutinam, que voltam a centrar a equipa nas suas dinâmicas. Hoje, contra o Inter, a falta de Otamendi não se verá só quando for preciso recorrer à sua leitura de espaços para mascarar alguma perda de velocidade, à sua capacidade para ser intimidatório nos duelos, à experiência que se vê em cada desarme que ele faz no limite, à sua capacidade para ganhar o segundo poste nas bolas paradas ofensivas. Morato, que o substituirá no centro da defesa, trará outras valências, como por exemplo uma saída de bola de pé esquerdo. Mas será importante ter em campo quem seja capaz de manter a equipa centrada naquilo que ela faz bem. O adversário é forte, apesar do mau momento que atravessa. Tem gente na frente do gabarito de Lautaro Martínez e pode depois dar-se ao luxo de escolher entre Lukaku e Dzeko – e para o Benfica, do mal o menos, parece que joga o bósnio em vez da máquina de demolição que é o belga. Falta a Inzaghi o futebol clarividente de Çalhanoglu a meio-campo, mas não deixa de ter Brozovic, de régua e esquadro debaixo do braço, pronto para entrar no espaço entre Barella e Mkhitaryan. Os cinco de trás também raramente têm sido um problema para os nerazzurri, que é certo que só venceram uma vez desde que ganharam ao FC Porto em San Siro, a 22 de Fevereiro, e que vêm de seis jogos seguidos sem vitórias, mas nesses seis jogos só sofreram seis golos – e só uma vez, em La Spezia, encaixaram mais de um. O Benfica pode superar este Inter, mas é importante que não passe da ressaca à dúvida e que jogue hoje com a capacidade para se recentrar depois de ter percebido, contra o FC Porto, que está muito longe de ser uma equipa invencível.
A escassez Guardiolista. Gosto de ouvir Guardiola, porque inevitavelmente me faz pensar. Até quando não é totalmente honesto na argumentação... Ontem, a propósito dos quartos-de-final da Liga dos Campeões, onde o Manchester City vai defrontar o Bayern Munique, Pep fez uma comparação muito interessante. Falou de Jack Nicklaus, um dos maiores golfistas da história, que ganhou 18 majors [os torneios mais importantes do circuito] em 164 participações. Falou de Michael Jordan que ganhou a NBA seis vezes em 15 anos nos Chicago Bulls. “O desporto é assim. No futebol, no golfe, no basquetebol... Perde-se mais vezes do que se ganha”, rematou o treinador espanhol. E sim, tem razão nesta visão de escassez que muitas vezes não ocorre a quem olha para uma competição e decreta que um determinado clube “tem a obrigação” de a vencer. Até o Real Madrid perdeu mais Ligas dos Campeões do que as que ganhou – e já se sabe que é o clube que mais ganha. O problema do Manchester City, porém, não é o de perder mais do que ganha. É o de, a este nível, ainda não ter ganho – mesmo que a perspetiva segundo a qual afoga o mercado em milhões sem fim seja cada vez mais enganadora, face ao comportamento de outros tão poderosos e gastadores como o do Abu Dhabi.
Uma banana e chega. Sempre me fez alguma confusão como é que Iuri Medeiros chegou à idade que já tem – 28 anos – e nunca deu o salto para um patamar superior de rendimento. Agora, na conversa que manteve com um podcast do SC Braga a propósito dos 100 jogos pelo clube, percebi que não foi por uma questão de timidez, que admitia travasse o rapaz açoriano sem que o via metido consigo mesmo em campo, isolado da equipa a partir da faixa lateral. A conversa foi divertida, pelo desassombro com que Iuri falou da carreira e da vida, mas levou-me a ficar ainda mais admirado. É que se Jorge Jesus, nos treinos, o via marcar os golos em banana, quando ele vinha da direita para o meio e dava na bola “à Robben”, a metê-la em arco ao poste mais distante, e lhe dizia que ele só sabia fazer aquilo, eu olhava para os lances idênticos que ele foi depois repetindo pelos muitos clubes por onde foi passando, primeiro por empréstimo do Sporting e depois por se ter perdido no caminho, e via uma arma temível, a gritar para poder ser aproveitada. Iuri, no entanto, nunca se fixou em lado nenhum. Nem no FC Arouca, nem depois no Moreirense ou no Boavista, numa altura em que o Sporting já desistira dele mas ainda queria fazer dinheiro com o seu passe. Nem no Génova, no Legia Varsóvia ou no FC Nuremberga, que acabou por dar dois milhões de euros por ele, mas para depois o emprestar ao SC Braga. Em Braga, Iuri também já teve momentos baixos, mas por estes dias parece que voa. Está a um golo de repetir os dois dígitos em duas épocas seguidas pela primeira vez na carreira – fez dez na temporada passada e tem nove agora – e certamente que lá chegará. É uma das forças no assalto braguista a um lugar na próxima Champions, muito à custa do tal remate em banana. Pode não saber fazer muito mais, mas aquilo que faz já dá um jeitão.