De Abel Ferreira ao Real Madrid
Uma das maiores virtudes de Abel Ferreira é a capacidade de adaptação às diferentes realidades que foi encontrando. Algo que, em Espanha, por exemplo, não se valoriza. E depois admiram-se.
O Palmeiras ganhou a Libertadores e Abel Ferreira sucedeu a Jorge Jesus como rei da América do Sul. Sei que em Portugal quer-se sempre mais saber quem que é fez melhor trabalho entre os dois – não nos basta ganhar, temos sempre de ganhar contra alguém, contra os maus… –, seja porque um tinha melhor equipa e teve mais tempo para trabalhar ou apareceu mais vezes nas primeiras páginas nos jornais, ou porque o outro “só” ganhou a Libertadores e não o Brasileirão, mas isso a mim, francamente, interessa-me zero. Para ganhar da forma que Abel ganhou, com uma equipa que me parece ser inferior ao adversário em individualidades, num jogo fechado, bloqueado, tenso, é preciso ter trabalhado muito bem – e esse é o mérito do treinador e da sua equipa técnica. Que, conforme tentei explicar aqui, não é extensível ao futebol português em geral, mas me faz pensar que uma das grandes virtudes do português é a sua capacidade de adaptação a novas realidades.
Abel Ferreira seguramente que não trabalhou da mesma forma nos juniores do Sporting, nos seniores do SC Braga, no turbilhão que deve ser o PAOK de Savides – o presidente que entrou em campo armado antes do final de um clássico com o Olympiakos e ainda ontem foi incluído pelo treinador português na lista de agradecimentos – e na loucura que há-de ser o futebol brasileiro, com a paixão extrema e radical que lhe está sempre associada. E essa capacidade de adaptação é tão importante para o sucesso como o são o método, a liderança e a sede de conhecimento, que no sábado, na RTP, o Tiago Fernandes e o Jorge Andrade reconheciam ao treinador de quem foram colegas de curso. Ora isto parece-me ser uma evidência tão óbvia que não paro de me espantar sempre que vejo grandes clubes ignorá-la e analistas acharem isso normal. Vem tudo isto a propósito de um debate que ouvi no fim-de-semana no podcast “Fútbol ES Radio”, em que moderador e vários convidados falavam sobre a dispensa de Jovic pelo Real Madrid.
Ora o tema é simples. Jovic, que até já passou pelo Benfica B antes de rumar à Bundesliga e por quem o Real Madrid pagou, no Verão de 2019, 63 milhões de euros, acabou dispensado 18 meses depois, de volta ao Eintracht Frankfurt, por escandalosa falta de rendimento: em ano e meio fez 32 jogos e marcou dois golos, ambos irrelevantes, pois um chegou num 5-0 ao Leganés e outro num 4-1 ao Osasuna. Questionado acerca das razões do fracasso, o jogador encontrou uma acima de todas: não fala espanhol e o treinador do Real Madrid, Zinedine Zidane, também não fala inglês, nem muito menos sérvio. Quem se lembra do vídeo hilário de Zidane a dar instruções a Jovic antes de o colocar em campo contra o Galatasaray – “You attack, OK?” – não lhe custa a crer nesta versão dos acontecimentos. E nem precisa de ser um dos muitos que já riram até mais não com a famosa compilação de “gudibinins” de Unay Emery no Arsenal – por que razão terá ele falhado em Londres? – para achar isto tudo uma anormalidade.
Os comentadores do podcast, contudo, desvalorizaram a situação e até juntaram que Diego Simeone, treinador argentino do Atlético Madrid, também não fala inglês e que, ao receber Trippier, por exemplo, teve de se socorrer de um intérprete para falar com ele. Portanto, está aí o segredo? Contratar um intérprete? Ou vários, tendo em conta a multiplicidade de idiomas que se falam hoje em dia nos balneários das grandes equipas mundiais, reforçadas de acordo com a globalização? Não. Claro que não é preciso ser muito exigente para achar que, com o tempo livre de que dispõem, os jogadores têm forçosamente que se adaptar e que aprender num par de meses a língua do país onde vão jogar – Jovic, de resto, em Portugal, tinha uma professora de português sérvia. Mas serei só eu a achar que é uma estupidez digna de registo juntar 750 milhões de euros em recursos humanos vindos das mais variadas proveniências e depois contratar para os gerir um homem que não tem capacidade de se fazer entender por eles?
Ainda há dias, quando, impulsionado pela presença de Abel Ferreira na final da Libertadores, escrevi acerca da escola de treinadores portugueses, salientei que ela na verdade, não existe. Que o que há é uma capacidade de adaptação notável de todo um povo, a fazer com que os nossos treinadores não deixem de ter sucesso onde quer que seja por não falarem inglês. E atenção que o idioma, no caso de Abel no Palmeiras, nem seria alguma vez um entrave. Mas o tema acaba por ser um arquétipo daquilo que tem de ser um líder – tem de saber jogar no campo dos liderados. E nisso, Abel Ferreira foi mestre. O Real Madrid que ponha os olhos nisto.