Conceição, o flautista de dragões
Luís Gonçalves explicou o murro na mesa de Conceição na final da Taça da Liga. O foco de desunião estava nos adeptos, que o treinador terá invocado e unido, como o flautista dos irmãos Grimm?
Isto anda tudo à volta do mesmo. Vi ontem à noite “Corvo Branco”, um filme de Ralph Fiennes acerca do bailarino russo Rudolf Nureyev, em cuja vida a grande metamorfose, de estudante atrasado para astro de brilho mundial, se terá devido a uma pergunta retórica lançada pelo seu professor, Alekxandr Pushkin, que é interpretado pelo próprio Fiennes: “Por que é que danças?” A conclusão, dirigida por Pushkin, é de que os melhores, aqueles que levam emoção para o palco, dançam “para contar uma história”. “Passamos tanto tempo preocupados com a técnica que nos esquecemos da história que queremos contar”, concluiu Nureyev, que deixou de ser um aspirante pouco imaginativo para se tornar uma estrela capaz de absorver a energia em volta de um palco. É igual no futebol: joga-se para quem vê, mesmo que tenha de se continuar a jogar sem ninguém estar lá para ver. Mas o facto de o futebol-indústria se ter tornado prisioneiro da sua própria atividade não quer dizer que não acolha de bom grado a luta pelo regresso dos adeptos, que ainda ontem foram o principal foco de debate no FC Porto, campeão nacional.
Pinto da Costa continuou a liderar a batalha, que é justa. Desta vez não forçou a piada acerca de Bruno Nogueira – já teve melhores dias, a ironia do presidente portista… – mas comparou a situação do futebol com a das touradas, que hoje já vão poder acolher espectadores até aos 50 por cento da capacidade dos recintos, no caso o Campo Pequeno, em Lisboa. Ora é certo que o público das touradas – como o dos espetáculos de humor – não costuma abraçar-se nos momentos de êxtase coletivo. Sabe-se igualmente que alguns dos principais focos de contágio da Covid-19 foram os jogos da Champions em Março, com as deslocações de adeptos que eles foram incentivando, mas mesmo assim faz pouco sentido que o futebol não possa ter gente nas bancadas, ainda que com lotação limitada e distanciamento social assegurado. E se a final da Taça de Portugal seria um pretexto tão bom como qualquer outro para se avançar, acredito que no início da próxima época o futebol possa celebrar essa vitória, que será voltar a ter adeptos nas bancadas, em condições de ver as histórias que os jogadores e treinadores terão para lhes contar.
Ao mesmo tempo, numa entrevista ao Porto Canal (pois é claro…) em que gastou o nome a Pinto a Costa e, sobretudo, a Sérgio Conceição, Luís Gonçalves, diretor-geral do FC Porto, levantou finalmente um pouco do véu acerca do famoso murro na mesa dado pelo treinador após a derrota na final da Taça da Liga, contra o SC Braga. Há meses que venho dizendo por aqui que gostava de saber a quem se referia Conceição quando, depois de perder a final de Braga e estando a sete pontos do Benfica na Liga, se queixou da “falta de união no clube”. Até hoje, nunca o treinador esclareceu essa dúvida mas, seis meses passados, tendo o FC Porto revertido a desvantagem em vantagem, ganho o campeonato sem público na bancada e estando em preparação para a final da Taça de Portugal, Gonçalves deixou escapar que esse foco de desunião eram eles também, os adeptos. “As palavras do Sérgio foram um grito de alerta. Todos perceberam que era obrigatório estarmos unidos. Os sócios não podiam deixar de apoiar a equipa, porque só unidos poderíamos vencer”, afirmou o diretor portista. Ora se, como disse Luís Gonçalves, “os SuperDragões tiveram um papel importante logo a seguir à final da Taça da Liga”, se eles “mostraram que tinham percebido o grito de alerta”, seria também deles a responsabilidade da tal falta de união?
Continuo a achar que Sérgio Conceição devia esclarecer a quem se dirigia, mas os números não desmentem o diretor portista e fazem do treinador uma espécie de flautista mágico capaz de invocar e dirigir os adeptos. É que, quando o treinador lançou o “grito de alerta”, o FC Porto seguia sete pontos atrás do Benfica. Nas sete jornadas que se seguiram, ainda pré-pandemia e com adeptos na bancada, recuperou oito pontos aos encarnados – fez 19 de 21 pontos, tendo a equipa de Lage somado onze desses mesmos 21. E nas dez rondas que acabaram a prova, já sem adeptos presentes, o FC Porto ganhou mais quatro pontos na comparação – conseguiu 22 de 30 pontos, tendo o Benfica obtido 18 desses mesmos 30. Daqui se inferem dois factos. Que o Benfica não perdeu o campeonato por não ter o “Inferno” da Luz atrás da equipa, embora essa noção tenha sobrado do 0-0 em casa com o CD Tondela na jornada da retoma, em que os encarnados podiam ter passado para a frente na sequência da derrota portista em Famalicão. E que a recuperação do FC Porto foi conseguida, sobretudo, com público nas bancadas, dando corpo às reclamações de Pinto da Costa pelo regresso do futebol à normalidade possível.