Conceição e o mercado aberto
Sérgio Conceição tem razão quando diz que não faz sentido andar tudo entretido com o mercado quando já se joga. Mas de quem é a culpa? E por que é que as coisas não mudam?
Sérgio Conceição já o tinha dito antes do jogo e, apesar de as interpretações mais frequentes para a fúria que descarregou em cima de Luís Gonçalves no momento do posteriormente anulado segundo golo do FC Famalicão apontarem para a falta de mais um lateral-esquerdo no plantel portista, voltou a dizê-lo no fim da vitória que a sua equipa obteve nesta segunda jornada: não há nenhuma razão válida a justificar que o mercado continue aberto para lá do início das competições. Tem razão o treinador do FC Porto. Mesmo que o diferimento no início das várias Ligas venha dificultar a coisa – houve na Europa vários campeonatos a começar em meados de Julho, um par de dias depois da final do Euro’2020 – a verdade é que só há uma razão para o prolongar desta angústia que os treinadores sentem até ao dia 1 de Setembro: é porque quem manda quer que seja assim. E isso prejudica os interesses de quem tem de gerir equipas de futebol.
O que está aqui em causa não é só os treinadores não saberem com quem poderão contar ao longo da época. Sérgio Conceição, por exemplo, não dirá que não a mais um defesa-esquerdo, da mesma forma que está preparado para perder Corona – e eu acrescentaria que também Sérgio Oliveira. O que está aqui em causa é o que vai na cabeça dos jogadores enquanto não tiverem a certeza de onde vão assentar a base nos próximos meses. O sai-não sai que marca este primeiro mês de competição é quase ingerível pelas equipas técnicas e, a não ser que haja muito juízo por parte de todas as pastes envolvidas, pode acabar sempre em crise. Mais ainda quando os sorteios não colaboram, como foi o caso na Premier League: depois de Kane ter feito uma espécie de “greve” ao início dos trabalhos do Tottenham, para forçar a saída para o Manchester City, eis que o calendário dita um Tottenham-Manchester City na primeira jornada.
Nuno Espírito Santo foi um mestre do tato, manteve o capitão e melhor goleador de fora do onze, ganhou na mesma o jogo e é capaz de ter ganho o jogador para o que resta da época, que com estes três pontos a gestão do clube pode encher o peito de ar e gritar que agora é que nem com 200 milhões o levam. Mas podia ter corrido ao contrário. Com Kane fixado na ideia da saída, uma derrota podia levá-lo a desfocar ainda mais do clube com o qual assinou há três anos um contrato de seis épocas sem cláusula de rescisão – o que não terá sido uma coisa assim muito inteligente. E da mesma forma que há dias aqui escrevi que a culpa dos problemas financeiros do FC Barcelona era da gestão do clube e não dos jogadores a quem esta ofereceu contratos milionários – estes é que não terão de todo a obrigação de abdicar dos salários – também agora digo que não entendo a pressão que jogadores sob contrato assinado livremente exercem sobre os clubes, no sentido de os transacionar abaixo do preço que acham justo.
Dir-me-ão que os mercados continuam abertos até ao início de Setembro para satisfazer os agentes, essas figuras maléficas que dão sempre jeito quando é preciso justificar algo errado no futebol moderno. Ora os agentes são culpados de muitas coisas – sobretudo dos esquemas elaborados para tirar da indústria do futebol o dinheiro que é do futebol, mas que até aos futebolistas dá um certo jeito que dali saia, para mais tarde dele poderem usufruir livremente – mas neste caso não creio que sejam eles os reais culpados. Os negócios que se fazem em três meses também se fazem em dois. Não é por se juntar mais um mês ao defeso para efeito de transferências que eles ficam mais ricos ou mais pobres – trabalham durante mais tempo esta vertente do negócio, em vez de serem forçados a concentrar as coisas e, eventualmente, a contratar mais gente para tratar delas. No entanto, aqui a culpa não é deles. O verdadeiro problema é que apesar de toda a regulação recentemente introduzida, a calendarização do futebol continua a ser um caos, piorado pela aglomeração de mais e mais jogos numa época de competição.
Olhe-se para Pedri, Eric García ou Oyarzabal, todos eles titulares no Barcelona-Real Sociedad de ontem, na primeira jornada da Liga espanhola. Quando é que seria o defeso para eles? Todos estiveram a competir pelos clubes até final de Maio. Todos estiveram no Euro’2020 ao serviço da seleção espanhola entre Junho e as primeiras semanas de Julho. Todos estiveram depois nos Jogos Olímpicos, com a Espanha sub23, entre a terceira semana de Julho e a primeira de Agosto. É verdade que o facto de alguns campeonatos serem forçados a parar no Inverno, porque onde se jogam neva e faz muito frio, os leva a ter de começar mais cedo, em meados de Julho, altura em que os jogadores das Ligas mais a Ocidente costumam estar ainda de férias, se tiverem jogado provas de seleções durante Junho, ou a começar a preparação, se estivermos a falar de um cada vez mais raro início de verão sem grandes competições. Isso, só por si, já seria um impedimento – que o mercado tem de estar aberto ao mesmo tempo em todo o lado, caso contrário as equipas poderiam queixar-se de ficarem sem jogadores e de já não terem a possibilidade de os substituir.
Esse não é, ainda assim, o principal impedimento. Com jeito, atrasava-se o início das Ligas a Oriente. O principal impedimento para podermos ter um mês de mercado sem competição é o engarrafamento do calendário de competições, que torna ingerível qualquer tentativa de articulação internacional. E esse, sim, é o resultado da cada vez maior ganância de quem tem por missão fazer o futebol viver num ambiente saudável. Pedri fez desde o início da época de 2020/21 (e já contando com o de ontem) 53 jogos pelo FC Barcelona, dez pela seleção A de Espanha, sete pela seleção olímpica e quatro pela seleção de sub21. São 74 jogos desde o dia 3 de Setembro. E isto, além de ser irracional do ponto de vista da gestão física de um corpo que também há-de ter limites, deixa uma dúvida sem resposta: quando é que o rapaz tem tempo para pensar em contratos?