Como fazer de dois uma dupla
Ninguém marcou mais golos na Europa do que os somados, em conjunto, por André Silva e Ronaldo. Mas quererá Fernando Santos fazer dos dois uma dupla?
Assim de repente, para apimentar a coisa, vamos fingir que a frase não foi rodeada de um conjunto enorme de manifestações de modéstia, daquelas que todos os jogadores usam hoje em dia só porque lhes disseram que elas ficam bem – porque ser craque é também achar que se é “o maior”. “A época em conjunto que eu e o Cristiano fizemos é enorme”, disse ontem André Silva. Mesmo que tenha sido sem querer, a Federação Portuguesa de Futebol não podia ter escolhido melhor jogador para dar o pontapé de saída nas conferências de imprensa que a seleção vai patrocinar a propósito do Europeu’2020. Porque muito do sucesso que a equipa nacional possa vir a ter na prova passa pela capacidade que o selecionador venha a mostrar para integrar o segundo melhor marcador da Bundesliga alemã e o melhor goleador da Serie A italiana.
Números à frente. André Silva fez 28 golos no campeonato alemão pelo Eintracht Frankfurt. À frente dele, só Robert Lewandowski, autor de 41 finalizações bem sucedidas pelo Bayern. Erling Haaland, que toda a gente sabe que é um fenómeno, ficou-se pelas 27 no Borussia Dortmund. Por sua vez, Cristiano Ronaldo fez 29 golos pela Juventus na Liga italiana. Contando só campeonatos, André Silva e Ronaldo totalizam 57 tentos, um total que nenhuma outra dupla nacional conseguiu nas cinco grandes Ligas europeias. Quem mais se aproxima, com 50 golos, são as potenciais duplas polaca (41 de Lewandowski e nove de Milik no Ol. Marselha) e francesa (27 de Mbappé no PSG e 23 de Benzema no Real Madrid). Os holandeses Depay (20 no Ol. Lyon) e Weghorst (20 no VfL Wolfsburgo) ficam-se pelos 40, mais um do que os atingidos pelos ingleses Kane (23 no Tottenham) e Calvert-Lewin (16 no Everton) ou pelos italianos Immobile (20 na Lazio) e Insigne (19 no SSC Nápoles). Mais atrás ainda, com 34, aparecem os espanhóis Gerard Moreno (23 golos pelo Villarreal CF) e Alvaro Morata (11 na Juventus) ou os belgas Lukaku (24 no Inter) e Benteke (10 no Crystal Palace).
A avaliar esta realidade, apetece citar a frase de Jorge Jesus que, a propósito de uma evocação de Pablo Aimar, o meu amigo Luís Freitas Lobo ainda hoje recordou em O Jogo: “agora, com estes jogadores, é que vão ver como sou bom treinador”. Porque a compatibilização dos dois goleadores será, de facto, um grande desafio para Fernando Santos. Há outra frase, de autoria desconhecida, porque muita gente a repetia, que dizia que “difíceis de compatibilizar são dois maus jogadores”, mas não será bem assim. Ao todo, desde que André Silva se estreou pela seleção principal, na ressaca do Europeu de 2016, ele e Ronaldo só estiveram juntos no onze inicial em 15 jogos, onze deles em 2016 e 2017. Nos últimos quatro anos, a dupla só iniciou partidas da equipa nacional contra o Egito, o Irão, o Luxemburgo e a Ucrânia. Desde a saída do Mundial de 2018, aos pés do Uruguai de Suárez e Cavani (ora aí está outra dupla que foi possível compatibilizar), há três anos, Ronaldo e André Silva somam apenas 171 minutos juntos em campo, o que desde logo mostra uma hipótese de Fernando Santos perder este desafio: por falta de comparência.
O selecionador nacional pode fazer o que fez Andrea Pirlo na Juventus, por exemplo, que é achar que não dava para ter ao mesmo tempo Ronaldo e Morata e dizer que o português até tinha de descansar no jogo decisivo para a Vecchia Signora alcançar a qualificação para a Liga dos Campeões. Pode argumentar com o faro de golo de Diogo Jota (nove golos pelo Liverpool FC na Premier League inglesa e seis nos cinco jogos que começou de início pela seleção) ou até com a sua maior predisposição para fechar o corredor lateral no momento de perda da bola, mas é difícil não pensar que o sucesso de Portugal neste Europeu dependerá em grande escala da capacidade do treinador para encontrar uma forma de encaixar os dois goleadores que formam a dupla mais prolífica da Europa num sistema harmonioso. No fundo, de acertar com Ronaldo o que ele quer mesmo ser nesta equipa – coisa que Pirlo não conseguiu fazer na Juventus, que tantas vezes se mostrou órfã de um ponta-de-lança porque o português resolvia andar à procura da bola no meio-jogo em vez de ocupar o espaço central do ataque.
Porque se Ronaldo e Santos acharem que o capitão deve ser essa espécie de avançado peripatético, que anda por todo o campo, aparecendo onde lhe parece que pode ser mais desequilibrador, ficará sempre a faltar quem ocupe o espaço central do ataque, que esta equipa de Portugal não tem nem pode ter a harmonia coletiva de um Manchester City e entreter o adversário e tirá-lo da frente a circular a bola até ao momento em que mete gente na posição. Esse jogador pode ser André Silva, desde que um dos médios depois assuma o sacrifício de fechar o corredor esquerdo. Se, em contrapartida, Ronaldo e Santos acham que a nossa maior estrela deve ser ponta-de-lança, então precisarão, de facto, de quem assegure o equilíbrio nas outras zonas. Há três semanas para trabalhar isso até à estreia no Europeu. Por enquanto, só deixo aqui uma ideia: 57 golos a dividir por dois não são coisa comum. É aproveitar e fazer dos dois uma dupla.