Com o pé menos à mão
O golo de Nuno Santos, de letra, foi um monumento, não à arte do improviso ou até da espontaneidade, que ele disse que treina bastante o gesto, mas do descaramento e da devolução do futebol à rua.
O jogo estava de sentido único e o Sporting conseguia encontrar sempre as movimentações de Edwards para as entrelinhas, causando a partir dali inúmeros desequilíbrios na organização defensiva do Boavista, mas as finalizações não estavam a sair como Rúben Amorim queria. Há coisas boas e coisas más neste Sporting – e uma das más ultimamente tem sido não marcar golos nas primeiras oportunidades que constrói. E a equipa até joga com avançados de pés trocados para lhes facilitar o remate: Edwards, esquerdino, joga a partir da direita, Pedro Gonçalves, destro, saía da esquerda. Assim, ambos podem chutar com “o pé que têm mais à mão”, que ao mesmo tempo é o mais forte e preciso. A lógica, porém, não se aplica aos alas. Ontem, por exemplo, Esgaio teve um momento-Porro, no qual fez uma incursão da direita para o meio com a bola nos pés e, vendo a ocasião, chutou de pé esquerdo. Foi à barra. Nessa altura já o Sporting ganhava por 2-0, em grande parte porque, antes, Nuno Santos recusara ir buscar o pé direito para dar à bola o caminho das balizas. Ou da linha de fundo, que até seria o mais certo. Via-se que ele já ia com a ideia fisgada pela voracidade com que se fez à bola que até parecia estar mais à mercê de Morita. Edwards ganhara a linha de fundo mas só para provar que se jogar no lado menos canónico lhe facilita o remate, também lhe vai dificultar o cruzamento. Ou que Chermiti ainda tem muitas horas de treinos pela frente antes de poder dizer-se que está preparado e conhece de cor as movimentações que se pedem nesta equipa. A verdade é que o desequilíbrio acabou com um passe para as costas do ponta-de-lança. Sobrou a bola para a entrada da área, zona frontal, ou para o pé esquerdo de Morita ou para o direito de Nuno Santos. Era um pouco como escolher entre a fome e a vontade de comer. Ambos prefeririam estar em posições trocadas, para poderem finalizar com o seu pé mais forte. E daí talvez não, porque só assim Nuno Santos pôde colocar em prática o que depois disse que faz “muito nos treinos”: o remate de letra. O ala passou a perna esquerda por trás da direita e chutou, ainda assim, com uma violência e uma precisão inesperadas num gesto invulgar e nada recomendado, quase momento-piloto para um vídeo com o título “Não tentem fazer isto em casa”. A bola saiu entre vários adversários estupefactos – e ele até já tinha feito assim a assistência para o golo de Edwards na derrota no Bessa –, bateu no poste e foi para as redes. Nuno Santos começou ali a resolver o problema que poderia ser para o Sporting uma jornada em que os três primeiros já tinham ganho e fê-lo com um golo que vai correr Mundo, uma ode não ao improviso – lá está, ele treina aquilo... – mas ao descaramento e à desfaçatez de tentar num jogo da Liga uma coisa que só se faria na rua, entre amigos. O que é curioso é que é esta devolução do futebol à rua que também faz de Nuno Santos um caso raro de acumulação de más escolhas, às vezes de fitas excessivas e, de acordo com o que disse o treinador, de amuos quando percebe que não vai ser titular. Não se pode ter tudo, mas para já mais vale celebrar o golaço.
Um país estranho. Somos um país estranho. Os vídeos com mais visualizações no portal V Sports, onde estão reunidas as melhores jogadas da nossa Liga, jogo a jogo, são sempre os que dizem: “Caso”. Podem colocar lá “Golaço”, “Corte extraordinário” ou “Defesa do outro Mundo”, mas nada supera na mente do português o valor da palavra “Caso”. Não queremos discutir futebol, ver futebol, queremos discutir arbitragens e assinalar os erros dos árbitros, sobretudo se são contra as nossas cores. E isso vem desvirtuar a mentalidade de quem quer que ande no jogo, sejam jogadores, treinadores, árbitros ou adeptos, que estão sempre mais interessados em argumentar que os seus são injustiçados pela aliança mundial dos maus do que em glorificar as coisas que fizeram bem. O momento do golo de Francisco Geraldes no FC Porto-Estoril é a prova de que isto anda tudo maluco. É o momento que mostra que o ódio venceu – ou pelo menos está a ganhar por muitos e que temos de fazer substituições na nossa equipa, a da convivência, para recuperar e pelo menos devolver o futebol ao local onde eu o conheci, que era um local em que se podia estar com amigos, mesmo que eles gostassem de cores diferentes. O que se passou? Foi penalti contra o FC Porto e o público continuou a assobiar enquanto Geraldes partia para a bola com que faria o 2-2. Depois de marcar o golo, o jogador do Estoril virou-se para a bancada de topo e pôs a mão direita no ouvido, como que a dizer: “Então agora não assobiam?” Foi uma falta de respeito? Uma provocação? Sim. Como o tinham sido os assobios ao marcador do penalti quando ele estava a partir para a bola. Mas é isto que conseguimos quando legislamos no sentido de proibir até que adeptos de equipas diferentes estejam nas mesmas zonas dos estádios. Hoje já ninguém tira prazer de ganhar. Tira-se, sobretudo, gosto da derrota dos outros. E isto é mais do que grave. É muito triste.
Aursnes, o escriturário. Sempre que vejo Aursnes, imagino-o como escriturário num daqueles filmes distópicos que nos últimos anos se tornaram moda. Mangas de alpaca, pala na testa, gravata enrolada e dentro da camisa, para não a sujar, absolutamente eficiente. Tudo o que haja para fazer, ele não faz: já fez, antes mesmo que alguém se lembre de que é preciso. Não sou, já o disse, grande entusiasta de ver o norueguês no trio de apoio ao avançado do Benfica, mas o jogo de ontem, com o Marítimo, no Funchal, mostrou que não é porque a equipa perca com isso. É só porque com ele ali, as coisas correm de maneira diferente, com menos brilho estético e mais eficácia. Aursnes faz um drible, se tiver de fazer, mas prefere sempre a solução simples, que leva a que não imponha o seu jogo através do brilhantismo, mas sempre graças ao volume. Aurnses pode até falhar um passe, mas nunca arrisca o equilíbrio coletivo quando o tenta, porque sabe que nem sempre pode contar com os artistas para recompor as coisas, e mesmo esse passe que ele falha acaba por se desvanecer no meio dos números globais da partida. Aursnes é um pouco a cara de um Benfica construído ao contrário. Tudo nele nos diz que deve jogar com médio-centro, mas com ele aí, ao lado de Florentino, a equipa sente a falta de risco que lhe dava Enzo e que agora é conferido por Chiquinho. Tudo nele nos diz que não faz sentido tê-lo na frente, porque não tem a arte, o descaramento e aquela cara meio insolente e adormecida de Neres, a velocidade de Rafa ou o jogo de pantufas e jornal debaixo do braço de João Mário, mas com ele ali a equipa suporta o risco que mete a partir do médio-centro. Porque ele está lá para tratar, como se dizia antigamente, “da escrita”. E garante que ninguém vai para casa sem o trabalho feito.
Aurnes.
Devido à minha vida profissional apenas ontem pude ver e apreciar um jogo do Benfica.
Fiquei espantado com ele e Grimaldo. Simplesmente espetacular. Sinto que se marcasse golos nas oportunidades qud lhe aparecem seria qualquer coisa do outro mundo.
De facto, um jogador que dá gosto ver jogar.