Bernardo, Vieira e a eternização do poder
Nos clubes, a regra é a eternização do poder e a alternância é uma exceção combatida por sócios amedrontados com o que aí vem. Até por isso, o contributo de Bernardo Silva foi positivo.
Era o que faltava, Bernardo Silva não poder escrever no Twitter se é a favor da reeleição de Luís Filipe Vieira ou se, como efetivamente acontece, prefere a mudança no Benfica, paixão que até é tema recorrente na conta do atacante do Manchester City. Em termos de militância benfiquista, o que Bernardo fez ontem é quase uma questão de cidadania e, se há tanta coisa nociva nas redes sociais, neste caso elas vieram permitir uma que é muito certa: promover o debate e agitar as águas numa realidade cada vez mais cristalizada. Porque, como já se viu também nas recentes eleições do FC Porto, sobretudo quando ganham – e o Benfica e o FC Porto têm ganho… –, os clubes tornam-se poderosas máquinas de eternização do poder, com o aplauso assustado dos que acham que quem defende a mudança está a colocar em risco a capacidade de ganhar.
Não deixa de ser estranho que muitos adeptos que rejubilaram quando Bernardo picou o FC Porto na mesma rede social, que é a preferida dos futebolistas em Inglaterra, após ter ganho aos dragões na primeira jornada da fase de grupos da Liga dos Campeões, achem agora que o jogador tem de ser comedido nas opiniões. Que muitos dos que trabalharam ativamente para incluir glórias antigas e recentes do Benfica na lista de honra de Vieira achem agora que Bernardo Silva não tem direito a expressar as suas ideias, que é ingrato por não defender a continuação do presidente que lhe permitiu nascer (só uma vez, no entanto…) como jogador. Que venham diminuir o texto assinado pelo futebolista, alegando que nem foi ele o autor – foi pena não se terem lembrado disso quando o mesmo Bernardo foi castigado pela Premier League por causa de uma brincadeira no mesmo Twitter à qual foi dada conotação racista. Ou ainda que venha Jorge Jesus acusar o jogador de ser “ingrato”, quando ele próprio se afastou e assinou pelo Sporting no momento em que percebeu que o presidente não contava com ele para os planos de futuro desenhados com Jorge Mendes e que aquilo que queriam impor-lhe – o exílio nas Arábias – não lhe convinha.
No fundo, o que está aqui em causa é o conservadorismo nos clubes de futebol, máquinas de preservação de lealdades como não há outras na sociedade moderna – e só por isso Vieira se deu ao arrojo de dizer que, caso seja reeleito, este será o seu último mandato e que, por isso, é altura de “preparar um sucessor”. Nenhum primeiro ministro ou presidente da república se permitiria a tal descaramento numa democracia saudável. A questão é que, olhe-se para isto como se quiser, os clubes não são democracias saudáveis. Nos clubes – sejam eles quais forem – não prevalece a alternância, mas sim a continuidade. Os mesmos cidadãos que contestam a realidade que lhes é apresentada quotidianamente pelos governantes acerca da saúde, da habitação, da economia ou da segurança, vêm dizer aos comentadores independentes de não terem nada que se meter nos assuntos do seu clube, porque “nem são sócios”. Vêm acusar os membros da oposição, os que contestam o rumo do clube e apresentam alternativas, de estarem ao serviço dos clubes rivais.
Nas eleições marcadas para amanhã, Luís Filipe Vieira não vai ser julgado como cidadão – isso competirá, mais tarde, aos tribunais… –, nem enquanto defensor dos valores democráticos que alguns sócios consideram ser património fundamental do Benfica – se assim fosse, a recusa de se submeter a debates, alegadamente para evitar “o ruído”, ou a antecipação das eleições feita a martelo valer-lhe-iam um chumbo estrondoso. Nas eleições de amanhã, como em qualquer eleição de órgãos sociais de um clube de futebol, os sócios julgarão o trabalho que Vieira fez nestes 17 anos à frente do Benfica. E é por não haver dúvidas de que o clube é mais ganhador hoje do que era há 17 anos, uma altura em que atravessava um longo jejum de títulos no futebol, que estou convencido de que Vieira acabará por ser reeleito para mais um mandato. E, por mais incómodo que seja para ele passar por este processo eleitoral, por mais que o assuste a ideia de vir a perder umas eleições – o que é raríssimo num clube de futebol – são estes períodos eleitorais que servem para se discutir a política de um clube e para o fazer crescer em direção ao futuro. Nem que seja só por isso, o contributo de Bernardo Silva e dos que têm ajudado João Noronha Lopes a pensar o Benfica que aí vem já terá valido a pena.