Bela Guttmann dois ponto zero
O Benfica e o SC Braga, únicos representantes portugueses na Europa a partir de Março, estão longe do topo na Liga. Estranho? Normal. Regra geral, é assim. E foi explicado por Guttmann há 60 anos.
O apuramento do SC Braga e a eliminação do FC Porto dos quartos-de-final da Liga Europa, adicionados à já anteriormente obtida qualificação do Benfica para idêntica fase da Liga dos Campeões, vieram confirmar uma tendência avançada muito antes do seu tempo pelo técnico húngaro Bela Guttmann: é impossível “ter rabo para duas cadeiras”. Tendo em conta que só há oito jornadas por disputar na Liga Portuguesa, que o Benfica está a 12 pontos (dos 24 ainda em jogo) do FC Porto e que o SC Braga se encontra mesmo a 24, parece seguro afirmar que nenhuma das duas equipas nacionais que melhor figura fizeram na Europa vai ser campeã. E se isso em Portugal serve para montar uma série de teorias da conspiração, a verdade é que é normal que assim seja. Benfica e SC Braga elevaram para 26 o total de equipas portuguesas que atingiram esta fase das competições europeias no século XXI. E, dessas 26, só sete foram campeãs: nacionais.
Guttmann, campeão da Europa pelo Benfica em 1961 e 1962 – e no segundo ano perdeu o título nacional para o Sporting – era um homem à frente do seu tempo. Naquela altura ainda não havia fases de grupos, os calendários não eram tão apertados como são hoje, mas ele logo decretou, a justificar a perda daquele que seria o seu quarto título de campeão nacional seguido – já tinha ganho a Liga de 1959 pelo FC Porto e, depois, as de 1960 e 1961 no Benfica – com o excesso de jogos. Como adensar das competições a coisa piora. O Benfica de 1962 fez sete jogos na Taça dos Campeões Europeus, aos quais somou 26 na Liga e mais 12 numa Taça de Portugal que tinha a originalidade de se jogar a duas mãos desde o início. Mesmo que ao lote somemos os três jogos com o Peñarol, em pré-época, para a Taça Intercontinental, o total são 48 desafios no temporada. O Benfica de 2021/22 vai fazer pelo menos 55 – e isto é se for afastado já na próxima ronda da Champions – mas foi afastado muito cedo da Taça de Portugal e foi protegido, como todos os europeus, na Taça da Liga, com apenas dois jogos antes da Final Four. Além de que em 1961/62 a seleção nacional – aqui dada como exemplo de qualquer seleção – jogou cinco vezes, enquanto que em 2021/22 fará 12 ou 13 desafios, consoante se apure ou não para a segunda ronda do play-off de qualificação para o próximo Mundial.
Não é impossível ser campeão e fazer boa figura internacional neste futebol tão exigente. Há sete equipas para o provar, sete equipas que conseguiram atingir os quartos-de-final de uma competição europeia e ser campeãs na mesma época. Fizeram-no os dois FC Portos de José Mourinho (53 jogos em 2002/03 e 55 em 2003/04), o FC Porto de Jesualdo Ferreira (52 jogos em 2008/09), dois Benficas de Jorge Jesus (51 jogos em 2009/10 e 57 em 2013/14), o FC Porto de André Villas-Boas (58 jogos em 2010/11), o Benfica de Rui Vitória (52 jogos em 2015/16) e ainda o Benfica de Bruno Lage (60 jogos em 2018/19). Destas, é verdade que houve as que foram capazes de gerir a competição nacional a partir de determinado momento, tamanha era a vantagem de que já dispunham em Março, mas algumas ainda tiveram de se envolver em luta corpo a corpo até final: os dois Benficas de 2018/19 e de 2015/16, por exemplo, foram campeões por dois pontos. E se isto vem de certa forma explicar o facto de os dois candidatos ao título de 2022 terem ficado fora das provas europeias – no caso do FC Porto foi evidente o privilégio dado à competição nacional na rotação feita frente ao Olympique Lyon –, também ajuda a entender a caminhada até ao título do Sporting em 2021, em boa parte por ter ganho na ausência da UEFA o tempo de repouso e de trabalho em campo que lhe permitiu consolidar o modelo de jogo.
Até final da época teremos, portanto, FC Porto e Sporting centrados na Liga e no duelo que lhes falta ainda da Taça de Portugal. Pepe disse ontem que na desilusão de Lyon começaria a equipa a ganhar o jogo do Bessa, já no domingo, mas provavelmente essa ligação entre os dois desafios terá começado mesmo antes de a ronda europeia ter redundado em fracasso. O que vai ser curioso é perceber em que é que o sucesso desta semana frente as Ajax e ao AS Mónaco vai interferir com os objetivos nacionais de Benfica e SC Braga. Porque mesmo longe da possibilidade de virem a ser campeões, tanto um como o outro precisam de manter o foco na Liga. O Benfica para poder almejar atingir a segunda posição, que está a seis pontos e lhe dá a possibilidade de entrada direta na próxima Liga dos Campeões, o SC Braga para manter o quarto lugar, que dá acesso à fase de grupos da próxima Liga Europa e está ameaçado pelo Gil Vicente, a apenas um ponto de distância. O mais normal nesta fase seria que as equipas bem sucedidas na Europa pudessem ganhar alento emocional – o sucesso é sempre um bom doping –, sobretudo para jogos de perfil mais elevado, tendendo eventualmente a facilitar por desconcentração em partidas contra adversários mais débeis. E isso, tendo em conta que nas oito jornadas que faltam, Benfica e SC Braga ainda se defrontam, cabendo igualmente às águias visitar o Sporting e receber o FC Porto e aos minhotos jogar também em casa com os dragões, pode trazer uma cor e uma emoção diferentes à Liga.