As leis do mercado, de Beto a Mbappé
A regulação do mercado já passou por muitas fases até chegar à atual, em que dá uma vantagem excessiva a quem dele menos depende. Há que mudar isso para evitar que a pirataria ganhe ainda mais espaço.
O que está a suceder com Beto, o avançado do Portimonense que anunciou nas redes sociais que quer deixar o clube, o que também aconteceu com Harry Kane no Tottenham – ainda que por outras vias – e o que, em certa medida, está a passar-se no caso Mbappé-Real Madrid-Paris Saint Germain e até entre Cristiano Ronaldo, a Juventus e o Manchester City é tudo fruto da total desregulação a que está sujeito o mercado do futebol. Se há casos mais polidos e há outros mais selvagens, isso só se deve a dois fatores: a maior ou menor preparação humana dos jogadores e dos seus agentes e o maior ou menor desespero momentâneo dos clubes pelos euros que, mesmo sendo alvo de chantagem, as transferências podem valer. Porque o enquadramento legal faz pouco mais do que zero pela dignificação e clarificação de um setor cada vez mais opaco.
A regulação das transferências de jogadores já passou inúmeras fases ao longo da história. No início tinha muito a ver com a lei dos países ou com a condução mais ou menos férrea dos seus líderes. De Eusébio, por exemplo, sempre se disse que foi “proibido” de ir jogar para a Série A italiana pelo próprio Salazar, que veria no avançado do Benfica um baluarte no qual podia fazer assentar a ditadura, mantendo boa parte do povo “satisfeita”. Mas uns anos antes, na Argentina, Di Stéfano tinha conseguido que uma greve lhe permitisse deixar o River Plate, da Argentina, em direção aos Milionários, da Colômbia, em trânsito para Espanha. Uns anos mais tarde, em Portugal, o 25 de Abril trouxe a libertação e um êxodo de jogadores para o estrangeiro – Jordão, Gomes, Alves, Humberto, Damas – mas ao mesmo tempo, atrás da Cortina de Ferro, no bloco “soviético”, só os búlgaros e os romenos (mas estes apenas a partir de certa idade) podiam emigrar. Era a fase em que não havia qualquer lei internacional para regular o mercado de transferências, mas em que clubes, jogadores e agentes também não tinham aprendido a trabalhar com as vantagens conjunturais que o setor podia trazer-lhes a cada momento.
Nesse aspeto, os anos 80 e 90 do século passado foram brutais, com a criação do regulamento internacional do estatuto do jogador, o licenciamento dos empresários, que precisavam de uma licença da FIFA para operar, e uma série de outras restrições a um setor que estava a ficar seriamente desregulado, como a limitação de estrangeiros, que variava consoante os campeonatos. Só que a todas as regras mais apertadas se sucede invariavelmente a reação libertária: e essa veio pela via legal, com o acórdão Bosman, mas também pela financeira, com a interferência cada vez mais opressiva dos poderosos fundos de investimento, que perceberam que tanto podiam investir em arte como em imobiliário ou em ativos como jogadores de futebol, muito mais rapidamente valorizáveis – ainda que sejam capital de risco elevadíssimo. À medida que o dinheiro metido nos negócios aumentou – ainda apanhei, em início de carreira de jornalista, o quebrar da barreira dos dois milhões de libras, por Tony Cotee e depois Ian Rush, no mesmo Verão… – aumentaram também as estratégias para o esconder e para o fazer render, recorrendo equipas de advogados e a “off shores”. E isso não é exclusivo do futebol. É assim em todas as áreas da sociedade.
O futebol beneficia, ainda assim, de algumas exceções legais, reconhecidas pelos tribunais internacionais. Há limites para a inscrição de um jogador por mais de três clubes na mesma época desportiva (sendo que, desses, só pode jogar em dois); há regras especiais para castigar rescisões sem justa causa – muito mais penalizadoras do que na sociedade em geral – ou para recompensar a formação de talentos em cada transferência, através de um mecanismo de solidariedade; há janelas temporais nas quais o mercado de transferências está “aberto”, sendo os clubes proibidos de as tornar efetivas fora desses períodos. Essas são limitações boas – e ainda há dias me bati aqui pela harmonização internacional das janelas de mercado e pelo seu encerramento antes de se iniciar a competição. Todas estas são questões de facto, mais facilmente controláveis. O problema surge quando se trata de questões de direito, mais sujeitas a interpretação, suscetíveis de serem alvo de debate ou de negação plausível. É o caso, por exemplo, dos limites que a UEFA tentou impor com o Fair-Play Financeiro, que são facilmente dribláveis pelos clubes mais poderosos, como expliquei aqui, aqui ou aqui (e há mais no site, se quiserem dar-se ao trabalho de recorrer ao motor de busca interno). E é o caso, sobretudo, na tentativa de regulação ética dos mercados, que proíbe, por exemplo, um clube de abordar o jogador a não ser que este esteja no último ano de contrato, de forma a reduzir as tentativas de aliciamento. Todos o fazem, nenhum reconhecerá que alguma vez o fez.
O Paris Saint-Germain, cuja veia gastadora dificilmente contribuirá para congregar muitas simpatias de quem prefere defender os desfavorecidos, já se queixou do comportamento do Real Madrid ante Mbappé. O jovem francês está, de facto, no último ano de contrato e, ao que parece, em vez de ficar radiante por poder formar trio atacante com Messi e Neymar e ficar mais perto de ganhar a Liga dos Campeões, terá ficado aborrecido com a perda de peso no equilíbrio das estrelas dentro do balneário, reativando o apetite do Real Madrid. Dizem as notícias que os madrilenos já ofereceram 160 milhões de euros – e atenção, não há nada de errado nisto, como haverá na abordagem do Manchester City a Kane, que tem mais três anos de contrato com o Tottenham, ou nas promessas que terão sido feitas a Beto, ao que parece em nome da Udinese, quando o avançado tem vínculo com o Portimonense até 2023. Há, no entanto, uma grande diferença entre os casos. É que, dinheiro, o Paris Saint-Germain tem lá muito – e prefere ir à guerra, sujeitando-se a deixar sair Mbappé a custo zero daqui por um ano, só para fazer valer um ponto e enfatizar o que considera ter sido uma abordagem ilegal do Real Madrid, que já andará a falar com o jogador há mais tempo. O Tottenham meteu tudo no braço de ferro com Kane, que o Manchester City queria sem ter de pagar os 150 milhões que os londrinos exigiam – sim, são excessivos para um jogador de 28 anos, mas os Spurs não querem vender e assim fazem valer a sua posição – e tanto estará mais próximo de o vencer que Nuno Espírito Santo já veio elogiar a atitude do jogador e este anunciou que vai ficar.
E o Portimonense? O que poderá fazer um clube que a esta escala é tão pequenino para não ser esmagado? A verdade é que quase nada. Se, em nome da validade dos contratos que todos assinaram de livre vontade, acho imoral que os clubes queiram “forçar” jogadores a baixar salários, como sucedeu, por exemplo, em Barcelona, também ma parece pirataria ver jogadores a tentarem forçar a saída de clubes com os quais assinaram. Como está, a lei coloca sempre a vantagem do lado de quem tem mais vantagem – seja o clube, se o dinheiro para ele não importa, como o PSG, seja o jogador, se o clube faz depender o seu modelo de negócio das mais-valias com transferências, como o Portimonense. E é isso que é preciso regular. Com urgência.