Apareceu o Trincão
O golaço de Trincão, ontem, ao Estoril, pode ser o pretexto para que o jogador resolva um dos problemas que lhe têm afetado a época no Sporting: o bloqueio mental. Mas a origem parece ser mais física.
As grandes jogadas nascem sempre da capacidade de auto-desafio que leva os jogadores até à última. De um passe feito no limite, no momento em que já fixou dois ou três rivais para dar mais chances de sucesso ao companheiro a quem entrega a bola, de um drible executado no microssegundo em que a bota do adversário já está quase a sacar a bola dali, para diminuir as hipóteses que ele tem de voltar à jogada e aumentar o espaço libertado. O problema de Trincão não é o de não ter no cérebro o mapa das jogadas ou de não antecipar como elas se deviam desenrolar. Isso ele tem. Também não é de falta de talento ou de qualidade técnica no pé esquerdo, porque isso também lá está. O problema de Trincão tem sido físico, mental e, noutro plano, até tático. Tem sido físico, porque sempre que se leva uma jogada até ao fim, até àquele instante que separa um grande momento de um momento banal, aumentam o risco de choque e a necessidade de cabedal para aguentar o corpo-a-corpo ou de potência muscular para chegar mais rápido à bola que ali se arrisca. Um drible – e a especialidade de Trincão é o drible – é uma espécie de “dobro ou nada” da mesa de póquer. E a bola que se exibe, que ali se mostra ao adversário enquanto se lhe diz algo como “anda cá tirar-ma se conseguires”, está à disposição dos dois, mas só vai com o mais rápido a tirá-la dessa partilha, com o que for mais forte. E Trincão não tem sido nem o mais rápido nem o mais forte, pelo que raramente a leva no final. Ora daí se chega à questão mental, porque o insucesso repetido tem levado o jogador a uma timidez que o inibe de arriscar e o faz cair na banalidade. Sim, é verdade que as soluções simples e seguras são frequentemente as mais aconselhadas para cada situação, mas mesmo essas precisam de rapidez e de explosão: se uma equipa opta por fazer correr a bola e depender menos do rasgo individual em zona de criação, tem de o fazer com agilidade e rapidez. E esse não é o DNA de Trincão, que raramente solta ao primeiro ou ao segundo toque, acabando muitas vezes por ficar a meio caminho entre o desequilibrador que vai para cima do adversário e o engole e o jogador de equipa que fixa a marcação e solta imediatamente num colega. Não tem sido uma coisa nem a outra. Ontem, após uma primeira parte na linha do pouco que tem vindo a mostrar, Trincão apareceu. Aos 51’, pegou na bola junto à esquerda e torneou Guitane. Entrou na área, mostrou a bola a Gamboa e tirou-lha da frente com agilidade, beneficiando também do encolhimento do estorilista, claramente com medo de fazer penalti. Mudou rapidamente de sentido antes de chegar a Mexer, que também ficou fora do lance, mas não a ponto de entrar no raio de ação de João Carvalho, que foi traído pela abordagem receosa do parceiro de meio-campo e por isso mesmo estava demasiado longe para poder interferir. Naquela altura, na cabeça de Trincão, tolhida por tanto momento de insucesso, a mancha do guarda-redes Dani Figueira terá parecido algo como um comboio a aproximar-se a alta velocidade, mas nessa altura ele fez o que tinha de fazer e escolheu a solução simples: depois de onze toques com o pé esquerdo, fechou os olhos e deu-lhe com alma de direito. O golo, a fazer o 2-0 do Sporting ao Estoril, pode ser mentalmente libertador, mas enganam-se os que pensam que resolve a questão. Porque mesmo que Trincão volte a arriscar, mesmo que liberte a mente dos fantasmas que o tolhem, restam as outras facetas do problema: a física, que ele tem de trabalhar, e a tática, criada pelo excesso de esquerdinos no ataque do Sporting e que o leva muitas vezes para o corredor que menos lhe convém para acomodar Edwards.
“Não nos deixaram ganhar”. O “sabemos que incomodamos”, que Artur Jorge ontem disse após a derrota do SC Braga em Guimarães, é só mais uma versão do “se é para isto, acabem com o VAR” proferido anteontem por Pinto da Costa na sequência do desaire caseiro com o Gil Vicente, do “lutámos por esta Taça enquanto nos deixaram” que saiu da boca de Rui Costa depois da eliminação do Benfica em Braga ou dos “40 anos disto” assinalados por Frederico Varandas após uma derrota do Sporting no Dragão. Entendo que todos eles queiram criar no público, e sobretudo nos outros agentes desportivos, nomeadamente nos árbitros, a ideia de que só eles são prejudicados – até porque o público compra essa perceção como inapelável. Entendo igualmente que, a quente, se digam coisas no sentido de diminuir a responsabilidade própria pelo desaire, encontrando para ele os necessários bodes expiatórios no exterior. Mas faz-me um pouco de confusão como é que gente que anda no futebol há tantos anos desempenha estes papéis de forma estratégica e na manhã seguinte se olha ao espelho enquanto faz a barba. É que já não é só a aplicação evidente das palavras de Niemoller, a sensação de que só se queixam quando as coisas lhes correm mal e ficam caladinhos quando correm mal aos outros. É a certeza de que estão a matar a própria atividade com tanta suspeição, de que estão a dizer aos clientes potenciais do seu negócio que ele está inquinado – mas só se não ganham, atenção. É o dono do restaurante colocar alguém à porta a dizer algo como “não comam aqui, que os ingredientes estão todos estragados” e depois queixar-se porque tem a sala vazia e não consegue atrair estrangeiros. Hoje parece que há cimeira de presidentes. Não sou de cartas abertas, mas ainda lhes deixo uma mensagem: “Vejam lá se atinam!”
A FIFA devolveu a piada. A Argentina dominou os Prémios The Best, ontem entregues pela FIFA. Messi foi o melhor jogador masculino, Lionel Scaloni o melhor treinador e Emiliano Martínez o melhor guarda-redes. Quem partilha comigo estúdio ou quem assiste com alguma regularidade ao Futebol de Verdade sabe que embirro com perguntas acerca do “Homem do Jogo”, porque a verdade é que a maior parte dos jogos não tem um melhor em campo, que tudo depende dos critérios de apreciação. O que é mais importante numa exibição? Nunca fui capaz de o definir. Ora se escolher o melhor de um jogo é complicado, escolher o melhor de um ano mais difícil se torna. A eleição de Messi é apenas mais uma forma de consagrar um jogador que montou todo o seu ano de 2022 com o objetivo de conquistar o título que ainda lhe faltava e sacrificou tudo o resto a isso. Fracassou no PSG, apesar de ter sido campeão de França, porque falhou na Liga dos Campeões, mas ganhou onde queria ganhar. A eleição de Scaloni entendo-a como o prémio a um estratega que montou uma equipa capaz de acolher um Messi já bem para lá dos 30 e de funcionar em perfeita harmonia com ele. Não é tarefa fácil, como se viu na forma como ninguém foi capaz de o fazer com Cristiano Ronaldo, por exemplo, nem nos clubes nem na seleção. A eleição de Emiliano Martínez só consigo entendê-la como uma piada ao nível daquela que ele fez depois de receber a luva de ouro, na final do Mundial, colocando-a em frente aos genitais como se fosse um mega-falo, ao mesmo tempo que fazia uma careta. Nessa tarde, Dibu Martínez fez-me rir. Agora a FIFA devolveu a piada.