Alguém tem de meter mão nisto
Todo o negócio do futebol perdeu fulgor, mas as comissões a agentes aumentaram em Inglaterra. Isso é preocupante, mas é preciso compreender este fenómeno antes de o limitar. Se for possível, claro.
Quase todas as semanas há uma notícia que leva o cidadão comum a desabafar que “é preciso que alguém meta mão nisto”, sendo o “isto” a indústria do futebol. Geralmente, por mais liberais que até possamos ser, vamos ao futebol encontrar o ímpeto regulador contra o qual nos batemos nas outras áreas da sociedade, nem que para tal seja preciso um enorme excesso de “laisser faire” e de “laisser passer” que significam a ausência de responsabilização acerca da inexistência de VAR nos jogos do Mundial ou, agora, a consciencialização de que, num ano em que tudo no negócio do futebol diminuiu, aumentaram as comissões pagas a agentes por clubes ingleses. Não vou ao ponto de dizer que “é preciso que alguém meta mão nisto”, pois o facto de uma vertente do negócio ter crescido não significa, por si só, que ela navegue na ilegalidade, mas acredito que o negócio do futebol beneficiaria bastante do incremento da transparência que só pode nascer de um regulador não só mais poderoso como interessado em usar esse poder em benefício geral.
Nada me move contra os agentes de futebol, mas tenho a noção de que, com os cada vez mais apetrechados departamentos de scouting que possuem os clubes que fazem as maiores transferências, só uma espécie de máfia instalada leva a que os representantes que conduzem estas operações tenham de ser tão bem pagos. Como explicar que, num ano em que, devido à pandemia, se gastou menos em transferências, os clubes da Premier League tenham gasto mais em comissões? Foram 316 milhões de euros, entre todos. Esses 316 milhões de euros pagaram o quê, exatamente? Ando no futebol como profissional há mais de 30 anos. Cheguei cá numa altura em que ainda não havia empresários. Nessa altura – para falar só da realidade nacional – Manuel Barbosa tinha uma agência de viagens, a Mercury, e começava a passar da organização de estágios de equipas estrangeiras em Portugal ao aproveitamento dos contactos que tinha no Brasil para facilitar a transferência de brasileiros para o Benfica. José Veiga estava a lançar a Stadium Sport no Luxemburgo – conheci-o num sorteio da UEFA, em Genebra, ainda como emigrante, a distribuir cartões de visita aos jornalistas. E Jorge Mendes ainda jogava, ao que me diz o ZeroZero no Amadores de Caminha, e começava a pensar em montar negócio nos vídeo-clubes e nas discotecas.
Todos fizeram fortuna e isso, sem dúvida, teve a ver com um olho para o negócio que só está ao alcance dos predestinados. Sou o primeiro a valorizar esse empreendedorismo, a enorme capacidade que revelaram de entender a realidade muito antes dos outros e, assim sendo, de ganhar dinheiro. Mas quando todo um negócio está a perder fulgor e uma das suas áreas aumenta os ganhos, sim, é preciso pelo menos que o regulador compreenda o que está a passar-se para perceber em nome de que é que o dinheiro se mexe. Se o Chelsea vai contratar Werner, por exemplo, paga milhões de comissão em nome de quê? Não é um “finders fee”, porque toda a gente conhece o jogador. Não são serviços técnicos, porque não se pagam milhões a um advogado para redigir um contrato ou para nos representar numa negociação, quando os clubes já têm funcionários altamente bem pagos com essas competências. Logo, antes de nos envolver na luta que a FIFA quer patrocinar, impondo um limite de percentagem a pagar aos agentes numa qualquer transferência, é importante perceber o que é que se está a pagar, sobretudo numa altura em que o dinheiro e a propriedade no futebol são coisas cada vez mais difusas, em que não se sabe nunca quem é dono do quê e em que o dinheiro circula por paragens absolutamente inescrutáveis. E é legítimo que se façam perguntas, tanto do lado dos jogadores como dos clubes.
Hoje em dia, é normal que os grandes agentes tenham colaboradores a rondar os menores mais promissores e os seus pais, para os convencer a assinar contratos de representação desde tenra idade. Esta é uma luta que já se trava nos sub15: muitos acabam por não dar em nada, mas os outros, as exceções, justificam o empenho dos agentes, porque acabam por lhes dar muito a ganhar. O que leva os jogadores e os seus pais a ligarem-se desde logo a grandes agentes? Regra geral, a noção de que essa é a única forma de chegar a grandes clubes e a grandes contratos. Isso é algo que me entristece. Os jovens jogadores, cuja carreira é ainda um sonho, passam a ter dono e fazem com o empresário o que um cão faz com o dono: vão para onde ele quiser, na esperança cega de que ele o leve para sítios agradáveis, onde haja muita relva para correr e uma bola para brincar. É esta fé cega dos miúdos – e dos pais, que são tão ou mais culpados – que leva, depois, os clubes a pagarem por vezes mais de 20 por cento de comissão por um contrato de um jogador que toda a gente conhece, mas que aquele agente tem amarrado desde que ele ainda brincava com bonecos e apenas sonhava com a ideia de um dia vir a ser jogador.
Tudo isto é legal. A FIFA já fez algumas tentativas de limitar este “tráfego de menores”, mas só pode intervir quando há transferências de menores entre clubes, limitando-as aos casos em que haja também mudança de vida e de país por parte dos pais – ainda que depois, em casos como o de Messi, a coisa funcione ao contrário e sejam os progenitores a mudar porque o miúdo tem mais hipóteses no estrangeiro. Ainda assim, qualquer esforço nesta área irá sempre esbarrar em problemas como a legislação de cada país ou os artifícios legais que já protegem a propriedade dos clubes. É por isso que é preciso que alguém meta mão nisto e é por isso que isso só pode ser feito de uma forma global, não só em termos geográficos como abarcando todas as vertentes do negócio. E isso faria berrar muita gente poderosa.