Aimar e a liberdade
É evidente que o futebol de academia cria jogadores menos criativos do que o futebol de rua. Mas a questão deve ser: e cria piores jogadores? É que nem todos são Maradonas.
Causou furor uma intervenção de Pablo Aimar num debate acerca de futebol de formação, na qual o antigo internacional e atual selecionador argentino de sub17 identificava a tentativa de supressão do erro nos miúdos como razão primordial para a diminuição da criatividade do futebol em geral. É evidente que Aimar tem razão nesta questão em particular, mas já é mais discutível que a tenha se, além de alegar que este modelo de treino nos conduz a ter menos jogadores capazes de utilizar o futebol como expressão máxima de liberdade criativa, quiser dar o passo seguinte e defender que ele também nos leva a ter piores jogadores e, sobretudo, piores equipas. O problema da falta de criatividade no futebol está identificado há muito e tem a ver com a evolução da sociedade, a proliferação das academias e a perda de influência do futebol de rua. Mas, gerando menos Maradonas, o que é uma lástima, este modelo dá melhores equipas.
Dizia Aimar que não podemos ter jogadores criativos se, aos 15 anos, os impedirmos de driblar porque há risco de perderem a bola. Que, para serem criativos, eles precisam de não ter medo de errar. Ora aquilo que Aimar defende é o futebol de rua, o futebol com o qual os miúdos da minha geração ainda cresceram, o futebol com duas pedras a fazer de baliza e no qual, sim, saíamos a driblar desde a nossa baliza, às vezes até à do adversário. E muitas vezes perdíamos a bola. E, adivinhem: não tínhamos treinador nem nos fazia falta. Não importa aqui agora discutir se demos jogadores ou não – não demos porque não tínhamos talento, porque eles, os bons jogadores, saíam de algum lado e também era do futebol de rua. Hoje, de facto, pelo menos no Primeiro Mundo, não há futebol de rua na origem dos grandes talentos: eles são detetados desde tenra idade e imediatamente incluídos num ambiente profissional, sobre-treinados desde a meninice, para lhes aperfeiçoarem as qualidades e diminuírem os defeitos. Nesse aspeto, é evidente que lhes vai ser cerceada a liberdade, que se transformam mais em autómatos, em máquinas, do que se continuassem a crescer a jogar sem treinadores, com os amigos, a driblar de baliza a baliza nos terrenos baldios perto de casa.
A questão a que importa responder aqui, no entanto, é outra: mas crescem para ser melhores jogadores? E eu creio que em 99,9% dos casos, sim. Em 0,1%, que é o caso dos Maradonas, dos Aimares, que são génios puros, isso acaba por ser irrelevante. Os outros, os que são bons mas não parecem ter vindo de outro planeta, aprendem a esconder as fragilidades, aprendem a diminuir a possibilidade de erro e, sim, tornam-se melhores jogadores. Menos livres, sim. Menos criativos, sim. Mas melhores jogadores. Cresci também a ler Vítor Santos – tio de Rui Santos, o atual comentador da SIC, e uma das referências do jornalismo português na área do desporto daquela altura – quando ele dizia que estava iminente o primeiro título Mundial de uma seleção africana. E a ideia do então chefe de redação de A Bola não era motivada pelo facto de só em África se misturar o talento com a liberdade, de só em África ainda imperar o futebol de rua, o futebol de pé descalço com bolas feitas de trapos a dificultar o controlo e a melhorar a perícia individual: o que ele achava era que em África havia muito mais margem de progressão para o talento ainda não melhorado pelo treino. E acreditava que depois dos Camarões ou da Argélia de 1982, era para ali que devíamos olhar no curto ou médio prazo. Nisso, de facto, enganou-se.
O Mundo mudou nestes 40 anos, mas há duas coisas que permanecem inalteradas. A primeira é que o futebol é um desporto coletivo. E a segunda é que o treino serve para melhorar. E as equipas são cada vez melhores. Não tenho grandes dúvidas de que o Bayern de hoje ganharia a esmagadora maioria dos jogos ao Brasil de 1982. Aliás, o Brasil de 1982 nem à Itália de 1982 ganhou. E era uma equipa cheia de génios (Zico, Sócrates, Falcão, Éder, Júnior, Cerezo…) contra uma equipa de gregários sem centelha, que para jogar a final daquele Mundial, com a RFA, substituiu o mais criativo dos seus jogadores (Antognoni) por mais um defesa (Gentile). A questão colocada por Aimar é inegavelmente muito válida, mas a sua apropriação por uma corrente excessivamente lírica pode ser muito perigosa. Os treinadores de formação devem, evidentemente, evitar os “oitocentos treinos repetitivos” de que falava o argentino, como devem permitir o erro aos seus jogadores sem lhes cercear a criatividade, mas têm a obrigação de lhes incutir princípios coletivos que, a não ser que os miúdos se chamem Messi ou Maradona, não se compadecem com a ilusão da liberdade absoluta. Porque o objetivo, ali, é melhorar jogadores para um desporto que é coletivo, prepará-los para ganhar no seio de uma equipa.
Não haverá modelos mais rígidos, por exemplo, no aspeto posicional, do que o potenciado por Pep Guardiola, cuja base é a criação de linhas de passe múltiplas e permanentes para o portador da bola. Isso treina-se, sistematiza-se, operacionaliza-se. Se é para driblar de baliza a baliza, os miúdos podem sempre fazê-lo com os amigos, nos ringues perto de casa. E fá-lo-ão se gostarem mesmo de jogar futebol de forma livre.