Aconteceu um adversário
O que aconteceu ao Benfica? É o desgaste? Foi a paragem das seleções? É deslumbramento? É mais simples. Ao Benfica aconteceu aquilo que acaba por acontecer a qualquer equipa. Aconteceu um adversário.
De repente, quem andar nas redes sociais ou vir as análises aos jogos, venham elas daqueles adeptos mais apaixonados aos quais vai sendo dado palco ou dos analistas que entenderam que o caminho mais rápido e seguro para o sucesso é o de alinhar com as maiorias e servir-lhes de porto de abrigo emocional, fica a achar que afinal de contas o Benfica não joga nada. Não tem intensidade, velocidade, criatividade, poder físico, nada... O que aconteceu à equipa de Schmidt? É o desgaste acumulado por um grupo de jogadores que o alemão mudou pouco ao longo da época – e ainda ontem só fez uma substituição? Foi a paragem para os jogos das seleções que levou os jogadores a esquecerem em duas semanas como se pressiona ou como se monta um “rolo compressor”? São os próprios jogadores que se deixaram deslumbrar por uma campanha que andava muito perto da perfeição? Não digo que, casuisticamente, não possa ter sucedido ali um pouco de tudo, mas o que aconteceu ao Benfica esta semana foi algo muito mais simples, algo que, mais cedo ou mais tarde, acaba por acontecer a qualquer equipa. Ontem, contra o Inter, aconteceu um adversário, tal como na sexta-feira, contra o FC Porto, tinha acontecido outro. A equipa do Benfica não pôs ontem em campo as mudanças de velocidade no último terço que tanto a caraterizam? Pois não, mas o Inter percebeu que essa era uma das forças do futebol dos encarnados e nem precisou de adaptar: meteu toda a gente atrás da linha da bola, dessa forma reduzindo o espaço para as acelerações, usou os seus homens tal como se usa uma chicane no final de uma longa reta num circuito de Fórmula 1 para impedir excessos de velocidade. O Benfica não foi capaz de fazer um bom pressing sobre a saída de bola adversária, permitindo sempre que o Inter atraísse num lado para depois sair pelo outro? Pois foi, mas nem este Benfica foi alguma vez uma equipa fortíssima em pressão – é-o, sim, em contra-pressão, em reação à perda, fase do jogo que pressupõe que já se conseguiu colocar muita gente na frente – nem o Inter é impressionável nesse momento do jogo. Darmian, Acerbi e Bastoni, os três de trás dos italianos, têm qualidades com bola que os levam a conseguir alternar jogo curto e jogo longo, saídas criteriosas pelo lateral do seu lado, pelo do lado oposto, pelo médio-centro que se disponibiliza para receber ou até carregando eles próprios a bola, como fez Bastoni antes de cruzar para o golo inaugural. Por alguma razão o Inter resolveu o jogo depois do intervalo, que foi quando o Benfica decidiu subir as linhas e a intensidade da pressão – era disso que os nerazurri estavam à espera. O Benfica não passou de ser a melhor equipa do Mundo – que não era... – a ser uma equipa feita de trambolhos imprestáveis. Não desaprendeu de jogar, não se deitou à sombra da bananeira, não foi tramado pela pausa para os jogos das seleções. Pode até haver quem vos diga isso, porque se deixou dominar pelas emoções ou porque sabe que é isso que querem ouvir. Simplesmente – e já há algum tempo venho chamando atenção para isso – a acumulação dos jogos torna o Benfica uma equipa mais fácil de ler. E a subida de nível dos adversários torna-o mais fácil de contrariar. Consiga Schmidt reparar os danos que estas derrotas podem ter causado na cabeça dos jogadores, consiga ele mudar pequenas nuances num modelo que é ganhador e adequado aos jogadores mas não é imbatível, e voltaremos a ver o Benfica forte, rápido e intenso dos tempos áureos. Até que volte a acontecer aquilo que lhe aconteceu nestes cinco dias: um adversário.
Mudar para quê? Manifestei, logo no início da época, as maiores dúvidas acerca da gestão demasiado centrada nos titulares que Schmidt fazia do seu então extensíssimo plantel. Ao que se percebeu de fora, terá o treinador alemão julgado que era fundamental conseguir um bom arranque, que a presença na fase de grupos da Champions seria não só fulcral no plano financeiro como a argamassa que uniria o grupo e que, salpicada de vitórias, conduziria a um coletivo ganhador no plano desportivo. Já dei a mão à palmatória: teve razão Schmidt nessa gestão que contrariava a doutrina dominante, que exige uma maior rotatividade, não só para dar descanso aos mais sobrecarregados, como sobretudo para ter alternativas sempre prontas a contribuir, em caso de necessidade. Ontem, o facto de Schmidt ter feito só uma substituição – a já habitual, de Florentino por Neres, com Aursnes a baixar para o meio-campo – e, ainda mais, a presença frustrada de Gonçalo Guedes e Musa junto à linha lateral, para entrarem, já no período de compensação da segunda parte, sublimaram a sensação que já tinha sobrado do clássico contra o FC Porto: a de que o treinador acha que falta profundidade ao plantel, de que não tem confiança nos jogadores que costuma sentar no banco perto dele, que os vê mais como suplentes do que como reforços. A campanha do Benfica nesta época valorizou bastante os titulares. Mas os outros, os que não jogam com regularidade, serão hoje menos jogadores do que eram há nove meses. E, caramba, se nem com a equipa a perder pelo segundo jogo seguido veem o treinador olhar para eles como alternativa, isso certamente não os ajudará muito no plano mental.
O recital de Bernardo. O Manchester City-Bayern foi um recital de Bernardo Silva, por estes dias o mais completo jogador de futebol do Mundo. E nem precisava de ter feito um golo de cabeça para que isso seja gritado para quem quiser ouvir. Bernardo Silva é a peça móvel que dá sentido ao City de Guardiola, porque, como o treinador disse no final, entende de tal forma o jogo que é capaz de o interpretar a partir de qualquer posição. Ontem, a jogar a partir da direita do ataque, tomou sempre boas decisões com bola, passou vezes sem conta com ela por Alphonso Davies e transformou-se numa máquina de pressão, a impedir o lateral canadiano de ser importante no plano ofensivo. A somar a isso tudo, ainda fez um golo, num lance que parecia trazer o Mundo ao contrário: cruzamento de Haaland e chegada em corrida do mini-português para um cabeceamento imparável. O 3-0 não reflete a verdade de um jogo em que o Bayern até merecia mais, mas foi fruto de um domínio do City das variáveis mais importantes no relvado. E muito disso ficou a dever-se à leitura de Bernardo Silva, que, não, não tem de mandar no campo a partir da posição de médio-centro.
Inspiradissima a crónica de hoje. Parabéns.