A vantagem de ir atrás
Ninguém no seu perfeito juízo trocaria quatro pontos de avanço por quatro pontos de atraso, mas estar na frente apresenta exigências que nem todas as equipas são capazes de preencher.
Arne Slot, o treinador do Feyenoord, equipa que segue disparada para suceder ao Ajax como campeã dos Países Baixos, usou neste fim-de-semana o Benfica como exemplo paradigmático do aforismo que manda dizer que “até ao lavar dos cestos é vindima”. Gosto mais da versão anglo-saxónica, mais lírica e menos pragmática: “Não acaba até a senhora gorda cantar”. Mas a ideia é a mesma. Os vermelhos e brancos de Roterdão ganharam ontem ao Cambuur, último classificado da Eredivisie, têm oito pontos de avanço sobre o segundo, a cinco jogos do final, mas após a partida Slot quis pôr água fria no ponto de ebulição a que estava a chegar a festa. “Vejam o caso do Benfica. Há uma semana tinham dez pontos de avanço sobre o FC Porto e já só têm quatro”, afirmou. O interesse de Slot é evidente: quer segurar a euforia. Mas a tese é demonstrável em inúmeros ambientes. Tive contacto com ela em toda a minha formação desportiva, desde a ultrapassagem de Lasse Viren a Carlos Lopes, à entrada para a última volta da final dos 10 mil metros dos Jogos Olímpicos de Montreal, em 1976. Muitos desportos nos demonstram não só que a coisa só acaba quando acaba mesmo como até que há alguma vantagem em ir atrás. Percebi-o nas tardes intermináveis a ver meetings de atletismo, onde as tentativas de bater recordes do Mundo exigiam a presença de uma “lebre”, de alguém que era contratado para manter o ritmo da corrida e preservar os potenciais recordistas do esforço que implicava comandar o grupo. Ou nas ultrapassagens na Fórmula 1 feitas à base do cone de vácuo, conceito que nunca aprendi no plano da física mas com o qual me familiarizei desde miúdo, dos livros do Michel Vaillant. Ou ainda nas birras entre ciclistas da Volta a França, se havia nos grupos de fugitivos alguns que não trabalhavam, que não participavam na rotação para puxar, de maneira a estarem mais frescos no momento do sprint final. E no futebol? No futebol, o esforço de comandar é sobretudo mental. É o de contar os pontos que faltam para se poderem soltar os foguetes. Falta ganhar cinco jogos. Ou podem perder três. E depois são quatro e dois. E por aí a fora. É aqui que o equilíbrio emocional é fundamental. É evidente que nenhum treinador consciente quererá trocar uma posição em que está quatro pontos à frente, como está neste momento o Benfica, por uma em que está quatro pontos atrás, como está o FC Porto. Mas gerir vantagens é coisa para nervos de aço – e a dimensão da montanha cresce se falamos de jogadores pouco habituados a ganhar títulos. É isso que tem faltado ao Benfica? Sim, entre outras coisas. O Benfica e o Arsenal eram, há um par de semanas, os mais do que prováveis campeões de Portugal e de Inglaterra. Mas tremeram. Os portugueses com duas derrotas sucessivas – três, se contarmos o jogo da Liga dos Campeões com o Inter. Os ingleses com dois empates, ainda por cima em dois jogos nos quais estiveram sempre a ganhar por 2-0. Os campeonatos reabriram e não foi tanto por haver vantagem em ir atrás mas sobretudo porque quem liderava não conseguiu materializar a vantagem de estar na frente. Que exige sangue-frio, domínio emocional. Aquilo a que Bobby Robson chamava “instinto assassino”. Ou que, muitos anos antes, José Maria Pedroto apelidou de “estofo de campeão”. As próximas semanas nos dirão quem o tem.
Risco de esgotamento. O futebol, no entanto, não se compagina com a busca de uma razão primordial para fenómenos como o esgotamento de uma equipa. Anda meio mundo no jogo em Portugal a querer encontrar a razão para a quebra do Benfica, que pareceu em Chaves ser uma equipa esgotada, sem soluções, sem chama, sem carisma – quando há um mês esbanjava futebol e energia em goleadas. Nos quatro jogos que fez em Março, o Benfica somou quatro vitórias e marcou 15 golos; nos quatro jogos de Abril, ganhou um e perdeu três e fez apenas dois golos, um deles um autogolo. O que se passou? Foi a renitência de Schmidt à mudança? Foi a pausa das seleções? Foram as férias que o treinador deu aos jogadores nessa altura? Foi a tremedeira dos jogadores face à possibilidade de celebrarem o título ou à atenção dada ao retrovisor? Foi o deslumbramento perante os elogios que choviam em catadupa? Foram os adversários que apareceram mais apetrechados? Há, a posteriori, uma série de razões para a quebra do Benfica – e sim, aqui temos de ser resultadistas na análise. Porque a doutrina pode mandar fazer uma coisa, o líder pode estar a fazer outra, mas se ganha tem razão. É que cada grupo tem as suas singularidades e não é possível encontrar uma teoria universal que explique o universo. A posteriori, é possível vir agora dizer que sim, Schmidt reduziu voluntariamente o seu plantel a 15 jogadores – os onze habituais titulares, mais Neres, Musa, Guedes e Gilberto –, o que não só pode resultar na fadiga destes como na absoluta impreparação dos restantes elementos do plantel para os render em caso de necessidade. A posteriori, é possível vir agora dizer que o futebol sempre igual do Benfica, com saída a quatro, projeção dos dois laterais em simultâneo, os quatro da frente a jogar por dentro e forte reação à perda com pressão sobre o portador, conduziu a uma maior facilidade dos adversários para lerem o jogo e criarem os antídotos, ainda assim sempre dependentes da qualidade que depois têm para os colocar em campo. A posteriori, é possível vir agora falar das mini-férias dadas aos jogadores na última pausa de seleções, nas fotos tiradas no Estoril Open ou em retiros mais ou menos distantes nos quais se refugiaram nessa altura, para alegar que está aí a razão da falta de foco destas últimas semanas. Mas a questão é que se o Benfica ganhar os jogos que lhe faltam também será possível olhar para a construção de rotinas, para o jogo minimal-repetitivo, para o grande entendimento entre o onze-base, para a importância mental que teve essa mini-pausa e ver nesses fatores a razão para o renascimento da equipa depois desta quebra. No fundo, essa é a razão pela qual gosto de campeonatos por jornadas e os prefiro às teses peregrinas que vêm pedir a criação de play-offs para aumentar a emoção dos últimos meses da época. Só acabam no lavar dos cestos – ou quando a senhora gorda cantar – e no fim ganha quem tiver mostrado mais capacidade. Mais estofo de campeão.
Dar o corpo às balas. Sérgio Conceição não tem problemas em reconhecer que em condições normais está irritado. Até se ri com isso. E a exibição que o FC Porto fez contra o Santa Clara, no sábado, deu-lhe razão para tal. O jogo era a ocasião perfeita: o Benfica acabara de perder em Chaves, os dragões tinham pela frente a pior equipa do campeonato, uma equipa que não só era última como chegava ali com oito derrotas seguidas, metade das quais com chapa três a pontuar a desilusão. E no entanto o que se viu foi uma equipa portista ansiosa, pouco clara com bola e passiva sem ela, a deixar o lanterna vermelha entrar no jogo, ativar os laterais no plano ofensivo, controlar o meio-campo com os três médios e mostrar até capacidade para dar gás aos extremos do seu 4x3x3. No fim, o FC Porto salvou os três pontos, mas a exibição deixou no ar a dúvida: quererão eles assim tanto morder os calcanhares ao Benfica? Sérgio Conceição fez até questão – porque sabe que aquele é um momento filmado e que por isso já encheu páginas nos jornais de hoje – de assumir ele mesmo a palavra na roda final. O que disse aos jogadores só quem lá esteve saberá. Mas certamente não foi o mesmo que disse na conferência de imprensa, na qual veio assumir em nome próprio a fraca exibição portista. Deu o corpo às balas, não por altruísmo, mas por esperar que os jogadores façam isso por ele num momento futuro.