A UEFA deu um sinal no sentido correto ao arrumar os livros de regras escritas e decretar a continuação do Paris Saint Germain-Istambul Basaksehir de ontem, hoje, ao fim da tarde, sem a equipa de arbitragem que causou o incidente de ontem. Não é vulgar que se deixe cair assim um árbitro, que deve ser a autoridade máxima em campo, sempre protegida pelas instâncias superiores, mas esta decisão era a única resposta que a História não julgaria posteriormente como incorreta por parte de uma organização que se empenha formalmente em lutas como a erradicação do racismo – era o que faltava se agora não respondesse assim na prática! Foi também isso que todos os jogadores já tinham percebido ali mesmo, no campo, no momento em que assumiram com coragem que não iam continuar com o jogo, arriscando enfurecer patrocinadores, canais de televisão e até os próprios dirigentes e adeptos, caso o RB Leipzig-Manchester United acabasse empatado e houvesse a possibilidade de uma pena de derrota conjunta implicar a eliminação dos parisienses.
Para quem não sabe, o incidente explica-se num par de frases. Aos 13 minutos de jogo, após uma falta de Kimpembe sobre Gulbrandsen, Pierre Webo, adjunto do treinador do Istambul Basaksehir, Okan Buruk, levanta-se do banco e protesta por não ter havido cartão amarelo ao defesa do PSG, quando pouco antes, por uma outra falta, Rafael, da equipa turca, tinha sido admoestado. O quarto árbitro, Sebastian Coltescu, chama o juiz de campo, Ovidiu Hategan, para lhe recomendar a expulsão do adjunto camaronês, referindo-se a ele como “o negro”. Coltescu esqueceu-se de três coisas. Primeiro, que com os estádios vazios, tudo se ouve – diz o “L’Équipe” de hoje que as palavras do quarto árbitro foram bem audíveis na tribuna de imprensa do Parque dos Prícipes. Depois, que o romeno é uma língua latina, bem próxima de tantas outras faladas ou entendidas por Webo, que jogou quatro anos no Uruguai e oito em Espanha. Ou por Demba Ba, senegalês nascido em França, ainda por cima numa cidade como Le Havre, multi-étnica como todas as cidades portuárias. Por fim, que por mais inocente que fosse o qualificativo utilizado pelo quarto árbitro, a história da humanidade transforma-o num insulto inaceitável.
A questão vai muito além do que dizia Ba – “Quando te diriges a um homem branco, não dizes ‘o branco’”. Não interessa sequer entender que o romeno “negru” é mais próximo em francês do geralmente mais insultuoso “preto” do que do socialmente mais aceite “negro” – que em francês se diz “noir”. Pode até haver gente interessada em limpar a folha ao árbitro romeno, que terá dito “negro” como podia dizer “coxo”, “loiro”, “baixo”, “alto”, “gordo”, “narigudo” ou “camaronês”. Ainda por cima disse-o num diálogo privado com uma terceira pessoa – o árbitro principal – e não com o intuito de insultar. Coltescu não foi um troglodita como os que vão para os estádios imitar os gritos dos macacos para condicionar os jogadores negros. Dir-me-ão que ele não disse nenhuma mentira, que Webo é, de facto, negro. Que não estão para aturar lições de moral vindas de elementos de um clube como o Istambul Basaksehir, feudo privado da família Erdogan, ela própria manchada com atos muito mais criminosos do que o cometido pelo árbitro romeno. Mas isso é irrelevante.
Coltescu terá sido, ele também, vítima de uma sociedade que ainda aceita que nos refiramos aos negros por essa caraterística distintiva, mas sobretudo de uma História que envergonha a humanidade. A minha esperança no desaparecimento gradual das desigualdades leva-me a acreditar que um dia chegará em que os atos inumanos com que a população negra foi – e em muitos momentos ainda é – castigada serão coisa tão remota que os nossos descendentes possam dizer “o negro” com a mesma naturalidade com que se diz hoje “o loiro” ou “o magro”. Esse dia, contudo, ainda está longe. E é por isso que aplaudo a coragem dos jogadores das duas equipas no momento de abandonarem o campo – e para os do Paris SG ainda havia risco de eliminação – e, depois, por ser mais rara, da UEFA, na decisão de mandar repetir o jogo sem a presença do quarto árbitro. O combate ao racismo não se faz só de vídeos bonitos nos ecrãs dos estádios ou de fotos de jogadores de vários tons de pele com T-Shirts a dizer “Não ao racismo”. O combate ao racismo faz-se com atos como este, em que se anuncia que não se pode aceitar aquilo que é inaceitável, nem sequer em nome de interesses tão fortes como os televisivos, os patrocínios ou a defesa da autoridade máxima num campo.