A Superliga dos árbitros
O intercâmbio de árbitros entre Portugal e França pode reduzir o ruído da pressão e do condicionamento e abrir portas a uma nova realidade. Que, no entanto, também pode descambar.
Sou, por princípio no contexto atual e não por qualquer espécie de corporativismo ou xenofobia, contra a nomeação de árbitros estrangeiros para jogos da Liga portuguesa. Creio que os nossos não são piores nem melhores do que os outros, são iguais. E imitar coisas como as que se fazem na Grécia, onde regularmente se chamam árbitros estrangeiros para os grandes jogos, serviria apenas para descredibilizar os nossos aos olhos do público, tornando-lhes depois mais difícil a tarefa do dia-a-dia, quando os estrangeiros regressassem a casa. Ainda assim, o intercâmbio entre as federações portuguesa e francesa, que neste fim-de-semana traz Willy Delajod ao FC Paços de Ferreira-SC Braga e leva Luís Godinho ao Girondins Bordéus-RC Lens parece-me uma ideia boa, a abrir caminho a uma espécie de Superliga dos árbitros.
Sei que a APAF foi contra, quando a coisa foi anunciada, e tenho alguma dificuldade em ver as razões de uma associação que permite que os seus filiados vão apitar no estrangeiro e não quer ver estrangeiros a apitar em Portugal. É complexo de superioridade? A ideia de que os nossos árbitros podem, porque são bons, mas os outros não? O “colonialismo” arbitral que Portugal já praticou em países como a Grécia ou na península arábica é que me parece errado. Já neste intercâmbio vejo méritos– e a redução da pressão sobre os árbitros é um deles, mas não é dos primeiros que me vêm à cabeça. Antes disso está a questão pedagógica, a forma mais rápida de explicar às pessoas que os árbitros estrangeiros também se enganam e que o erro não é fruto da vontade de favorecer o clube de que se é adepto desde miúdo mas apenas uma contingência do jogo.
É claro que, de futuro, se o intercâmbio for sendo bem sucedido e tiver mais episódios, quem perder encontrará sempre forma de se queixar. “Afinal os estrangeiros também já cederam à pressão do … [incluir nome do clube que jogou contra o nosso]”, dirão. Mas isso é resultado da paixão tantas vezes irracional que anda à volta do futebol e nunca será resolvido, nem com árbitros robóticos: nesse caso terá sido o programador ou a empresa que construiu os robots que se deixou corromper. Mas se este intercâmbio for bem sucedido pode abrir portas a uma espécie de Superliga dos árbitros, que se já são profissionais não têm nada que ficar limitados a um só país. E isto pode acontecer de duas formas, uma boa, regulada, e uma má, com total desregulação.
A má (sem julgamentos morais, mas vendo a coisa na perspetiva da arbitragem nacional) é as Ligas poderem começar a contratar árbitros onde muito bem entenderem, deixando estes de estar debaixo da égide das respetivas federações nacionais e sujeitos a promoções e descidas em função das classificações. Se o Paris Saint-Germain pode contratar o Nuno Mendes, por que é que a Liga Francesa não há-de poder contratar o Luís Godinho e incluí-lo no seu quadro de árbitros? Por que é que o Artur Soares Dias não há-de ser contratado pela Serie A? Ou que o João Pinheiro não há-de ir parar à Premier League? No fundo, esta versão liberalizada deixaria que o mérito (ou os empresários mais persistentes) se impusesse ao mercado e levaria ao mesmo êxodo de árbitros que temos de jogadores: os melhores que revelássemos acabariam por ir à vida deles, deixando o setor em Portugal ainda mais depauperado. Isto podia até ser suficiente para mostrar às pessoas que os nossos não são piores do que os outros, mas o nosso fraco poder financeiro levaria a que percebêssemos isso às nossas custas e que o nível geral baixasse em Portugal.
A boa passaria, daqui a meia dúzia de anos, talvez uma década, pela eventual criação de uma entidade supranacional que concentre a gestão e nomeação dos árbitros das seis ou sete melhores Ligas da Europa, escolhendo os mais capazes para os jogos mais importantes de cada jornada, independentemente da sua nacionalidade. Isto reduziria o poder de meia dúzia de caciques que ainda julgam mandar alguma coisa e podia baixar também o volume das tentativas de pressão e condicionamento que os clubes fazem sempre antes dos grandes jogos, contribuindo para melhorar o ambiente em torno do futebol e colocando um crivo mais exigente na definição da qualidade. É a pensar nesse futuro que aplaudo a estreia do francês Willy Delajod na Liga Portuguesa. No sábado, em Paços de Ferreira, Delajod pode apitar bem ou mal que estará sempre a abrir portas ao futuro. E, no fundo, desdramatizemos: são só árbitros e quem ganha verdadeiramente os jogos são os jogadores.