A segunda vida de Kökçü
A recuperação do Benfica começou no reenquadramento de Kökçü, o maior investimento da história do clube, para quem Lage recuperou um plano capaz de lhe destacar as qualidades e esconder os defeitos.
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Quando um clube português paga 25 milhões de euros por um jogador, como o Benfica fez com Kökçü, o mínimo que se exige é que crie todas as condições para ele poder exprimir as suas qualidades em campo. Afinal, são qualidades que levaram a um investimento bastante avultado para a nossa realidade. Ora o que o Benfica fez com o turco até muito recentemente foi o exato contrário disso: investiu num jogador que prosperava num meio-campo a três, uma estrutura que, ao mesmo tempo, lhe permitia ver o jogo de frente e o isentava da ocupação rigorosa de espaços nos momentos sem bola, mas depois enxertou-o em missões que não o favoreciam, seja por causa das suas caraterísticas ou das dos que o rodeavam em campo. Com Roger Schmidt, Kökçü foi numas vezes segundo médio, noutras segundo avançado, algumas ainda atacante a partir da esquerda e tanto uma coisa como as outras levavam a que se lhe vissem mais as fraquezas do que as qualidades. Bruno Lage mudou isso e o turco é hoje outro jogador. Começa ali a recuperação do Benfica.
No ano passado, no auge da crise desportiva, Kökçü deu uma entrevista ao De Telegraaf, na qual se queixou das opções do treinador. Logo nessa altura, dei aqui a minha opinião sobre o tema. Um dia depois, analisei aqui as mudanças no futebol do médio contratado pelo Benfica ao Feyenoord ao longo dos anos. E se não faz sentido regressar à questão da quebra disciplinar que ele protagonizou, o tema tático nunca perdeu atualidade. Kökçü foi o melhor jogador da Eredivisie a jogar num meio-campo a três. Fê-lo, primeiro, com Aursnes atrás dele e de Guus Til e, depois, no ano de maior protagonismo, com Wieffer a protegê-lo a ele e a Szymanski. Foi por vê-lo a jogar assim que o Benfica o contratou e pagou aquilo que pagou por ele. E, no entanto, Schmidt optou por sacrificá-lo a um plano imutável, que sempre – desde Leverkusen, pelo menos... – teve dois médios a par, exigindo a um terceiro que funcione como segundo avançado. Não tenho nada contra os treinadores que têm uma ideia. Pelo contrário, sou a favor. Também não tenho nada contra os clubes que contratam jogadores para satisfazer a ideia do treinador. Mais uma vez, sou até a favor, porque se há quem saiba do que precisa para fazer a equipa funcionar, em princípio, é o treinador, não é um tipo de fato num gabinete, mesmo que eleito pelos sócios. O problema aqui é que todo este processo exige competência. E o caso de Kökçü prova que ela andava longe.
Percebo as teses segundo as quais os jogadores têm de se adaptar às ideias dos treinadores, como entendo as que mandam os treinadores olhar para o plantel e desenvolver um sistema que lhe sirva – que foi o que fez agora Bruno Lage. Mas tudo isso são reações, são adaptações. O modelo ideal manda que a ideia preceda qualquer tentativa de a corrigir. Pagar aquilo que se paga por um jogador diferenciado apenas para lhe gerar desconforto na forma de jogar não é a melhor maneira de chegar ao sucesso. E, ainda que em Roterdão tenha sido sempre mais segundo do que terceiro médio – tanto Guus Til em 2021/22 como Szymanski em 2022/23 se chegavam mais à área –, Kökçü estava muito desconfortável, não só em função do sistema, do dois-mais-um que o Benfica adotava a meio-campo, como até da forma como jogava quem estava à sua volta. Se o treinador o usava como segundo médio, isso deixava perceber a sua falta de rigor defensivo na ocupação do espaço, tornada ainda mais relevante pelas debilidades na pressão de quem surgia à sua frente. Se, em contrapartida, era utilizado como segundo avançado, isso contribuía de forma decisiva para a falta de presença que a equipa mostrava na área, porque o modelo-Schmidt pedia que os atacantes exteriores se mantivessem nas entrelinhas e não fizessem tanto ataque a zonas de finalização, mas também porque depois faltava rasgo a quem definia o jogo ofensivo atrás dele. Não é que haja aqui verdades absolutas, que o turco não possa, em abstrato, ser uma coisa ou a outra. Mas não era a isso que ele estava habituado e não era isso que as caraterísticas dos atacantes e dos médios da equipa recomendavam para ele.
Um jogador não é bom ou mau porque faz uma coisa bem ou outra mal. Uma equipa de onze Messis ou onze Ronaldos não seria campeã de coisa nenhuma. O segredo está sempre nas complementaridades, na capacidade para se sublinhar o que ele faz bem e esconder o que ele faz mal – e, sobretudo, em contratar já com isso em mente, para depois não ter de se remendar. Kökçü prospera a jogar a partir da zona de meio-campo, de onde possa ver o jogo de frente e usar a sua grande angular para meter passes de rotura. E nem perde golo por isso, que seis dos sete remates que fez sob as ordens de Bruno Lage foram de fora da área. Por outro lado, sofre se tem de jogar a par de um médio de contenção, sobretudo se à frente dele não estiver quem tenha na transição defensiva o seu momento de eleição – ou pelo menos um momento no qual seja minimamente competente, como é o caso de alguns dos atacantes do Benfica. Podia este plantel encaixar no 4x2x3x1 de Schmidt? Ou, se preferirmos, invertendo a ordem dos fatores e pondo a ideia antes do recrutamento, será que o 4x2x3x1 de Schmidt recomendava a formação daquele grupo? Até acho que sim, não tivesse o alemão feito más escolhas na definição dos onzes, respondendo com excesso de cautela às dificuldades que teve a defender na época passada. Também passei pelo tema aqui, na análise à derrota que o Benfica encaixou em Famalicão.
Kökçü podia dar risco ofensivo a partir de uma vaga como segundo médio desde que a equipa à frente dele soubesse protegê-lo. E isso vinha exigir outro tipo de escolhas para formar o quarteto da frente. Mas mais fácil era agora mudar a estrutura, metendo-o num 4x3x3 que foi sempre o seu ‘habitat natural’. E se Kökçü já tinha crescido com a troca de Prestianni por Rollheiser no onze-tipo de Lage, momento fundador desse 4x3x3, agora subiu ainda mais o nível com a entrada de Aursnes, jogador mais inteligente no plano tático do que o argentino. Num meio-campo a três, o Benfica esconde melhor as debilidades defensivas do turco. Não precisa de ter dois trincos em campo. Aliás, até se lhe recomenda o contrário. Jogando em um-mais-dois, com um jogador a proteger as costas de Di María, ocupa melhor esse espaço que o argentino não preenche e que era a razão principal para que Kökçu não funcionasse no duplo-pivot do meio-campo. E – eis o upgrade trazido por Aursnes em relação a Rollheiser – passa ainda a poder compensar as ausências de um dos médios em momentos de transição defensiva, basculando para o lado da bola com outra prontidão. Mas, e a atacar? Se sai o segundo avançado, não há mais dificuldades em assegurar a presença na área? É aqui que entra Aktürcoglu, jogador que chegou para a ponta esquerda e cujas diagonais para a área já lhe valeram dois golos nos três jogos que fez. Além de poder criar com Kökçü uma parceria de raiz nacional com espaço para crescer.
Porque é esse o mote: crescimento. As três vitórias seguidas da equipa mostraram melhorias, mas também períodos negros. Desconheço se, quando Rui Costa lhe ligou para lhe propor que voltasse, Lage repetiu aquilo que tinha pensado em 2019, ao ser desafiado por Vieira para ir substituir Rui Vitória. “Tenho de meter o miúdo”, contou que tinha dito para os seus botões, no carro a caminho de casa. “Tenho de enquadrar o turco”, poderá ter cogitado agora. Falta perceber se a influência de Kökçü será tão impactante como foi então a de João Félix. E talvez isso já seja exigir demasiado.