A poesia de viver enganado
A linha que separa o sucesso do fracasso passa pela competência dos treinadores e decide-se sobretudo na coerência entre todos os setores. Mas há quem goste de viver enganado.
Há equipas que são riscos tanto quanto são oportunidades. São equipas que, por questões conjunturais, têm mais obrigação de ganhar. Para um treinador, pegar numa equipa dessas pode fazer toda a diferença entre uma carreira promissora e uma vida de vencedor, como pode ser o passo no sentido inverso, o da confirmação da incapacidade para ganhar. E por mais que queiram convencer-me do contrário, há sempre alguma dose de irresponsabilidade nas decisões. Quando o Sporting apostou tanto em Rúben Amorim tinha mais certeza do que a Juventus ao contratar Andrea Pirlo? Quando o Paris Saint-Germain despediu Thomas Tuchel para se adiantar à concorrência e garantir Mauricio Pochettino tinha mais segurança do que o Benfica ao estoirar 100 milhões de euros em reforços para dar a Jorge Jesus condições que o convencessem a regressar? Nestas coisas não há certezas. Há apenas riscos mais ou menos calculados. Mas há quem goste de viver enganado.
Veja-se o caso do Bayern e olhe-se para ele dos dois ângulos. Há uns anos, confiante no que lhe diziam os seis campeonatos seguidos que já tinha ganho, apostou em Nico Kovac, jovem técnico promissor, que vinha de duas épocas e meia de um trabalho tão sólido como pouco impressionante no Eintracht Frankfurt. Kovac falhou em poucos meses e os responsáveis do Bayern foram ao fundo da arrecadação, desviaram meia dúzia de baldes e esfregonas, e de lá de trás apareceu Hans-Dieter Flick, que os conduziu à glória na Alemanha, na Europa e no Mundo. Flick vai agora orientar a seleção alemã e o Bayern contratou Julian Nagelsmann ao seu maior rival desta época, o RB Leipzig, num casamento que tem tanto para dar certo que o melhor mesmo é desconfiar. Após uns meses parado, entretanto, Kovac pegou no Mónaco, conduzindo a equipa a um bom campeonato: é terceiro na Liga francesa, a cinco pontos do líder, que é o Lille OSC, e a três do Paris Saint-Germain dos milhões do Qatar, que ontem deve ter perdido todas as chances de ganhar um campeonato que a lógica manda atribuir-lhe a cada ano que passa, com uma exibição ridícula em Rennes. Escrevia Vincent Duluc no editorial do L’Équipe de hoje: “o PSG não só não tem o talento de épocas anteriores como não tem o coletivo para esconder esse facto”.
Como explicar que, com tanto dinheiro disponível, com tantos jogadores de classe Mundial, o PSG consiga perder a Liga francesa? Ou que a Juventus, que também ontem foi esmagada em casa pelo Milan (0-3, com os milaneses a falharem ainda um penalti), esteja a correr sérios riscos de não só perder o campeonato – esse já o perdeu, depois de nove anos seguidos a ganhá-lo – mas até a qualificação para a Liga dos Campeões? Culpa dos treinadores? Andrea Pirlo não tinha experiência e não teve mãos para o Ferrari que lhe puseram nas mãos? Pois é possível. Mas e Rúben Amorim? Que experiência tinha para conduzir o Fiat – os recursos que estão à disposição de um e do outro não terão comparação… – que lhe foi dado pelos leões? E Mauricio Pochettino? Não era um fenómeno quando colocou repetidamente o Tottenham nos quatro primeiros da Premier League e levou os Spurs à final da Liga dos Campeões? Então como pode ele perder o campeonato ao comando do Paris Saint-Germain? Ainda por cima no ano em que foi contratado como salvador, para substituir o despedido Thomas Tuchel, que entretanto assinou pelo Chelsea e não só levou a equipa londrina à final da Champions – foi o primeiro a atingir a final em dois anos seguidos por duas equipas diferentes – como mostra uma capacidade estranha para vencer o Manchester City de Pep Guardiola, que será o seu opositor na decisão de Istambul.
Sei que para a nossa lógica quase sempre maniqueísta de pensamento é muito confortável arrumar as pessoas em gavetas e mantê-las lá catalogadas. Guardiola é poético, Mourinho é defensivo, Klopp é divertido, Pochettino começa a ser “pé frio”, Nagelsmann é um génio, Tuchel é uma máquina, Conceição é irascível, Jesus é arrogante… As pessoas, porém, são sempre muito mais do que um rótulo. E quando se trata de treinadores, estipular assim que fulano é bom treinador e beltrano é mau não é um risco: é uma idiotice extrema. Lembram-se de Bruno Lage? Foi genial na primeira época e um asno na segunda. O caso de Jesus é paradigmático, de tão volúvel: foi um génio quando chegou ao Benfica, em 2009, e pôs mesmo a equipa a jogar “o dobro” (o que considerando o que a equipa jogava com Quique Flores não era assim tão difícil); foi um asno quando perdeu tudo da reta final, incluindo o campeonato, com o golo de Kelvin aos 90+2’; voltou a ser genial quando ganhou dois campeonatos seguidos; transformou-se outra vez em asno quando não foi capaz de ficar calado e contribuiu com a sua quota de basófia para o fracasso da primeira época que passou no Sporting; vestiu outra vez a capa do Super-Homem quando transformou o Flamengo em campeão brasileiro e sul-americano; e agora é outra vez burro porque perdeu a Liga Portuguesa depois de o Benfica ter feito o maior investimento de sempre para lhe dar uma equipa capaz de o convencer a regressar.
É claro que os treinadores não são todos iguais e têm diferentes competências. Há os bons, há os menos bons – e a diferença não é feita pelo diploma, que me desculpe a ANTF – e há os maus. Acontece que isso não explica tudo. Grande parte do cocktail que separa o sucesso do fracasso está na articulação entre pessoas, ideias e circunstâncias. Se esta época o Sporting for campeão, o grande mérito será de Rúben Amorim, mas também dos que acreditaram nele e, depois de fracassarem nas escolhas anteriores, lhe deram a autonomia para montar uma equipa de acordo com a sua ideia de jogo e lhe permitiram fazer a condução do grupo e das suas expectativas, não só dentro do balneário como na comunicação para o exterior. Tal como aconteceu no primeiro título ganho por Sérgio Conceição no FC Porto, num ano em que o clube não fez aquisições por causa das restrições do “fair-play financeiro”, ou na primeira Liga de Jesus, ganha com uma equipa construída a pensar numa determinada ideia: tudo ali fazia sentido.
A grande linha que separa o sucesso do fracasso pode até começar na competência ou na incompetência dos treinadores – não é possível ter sucesso com profissionais incompetentes – mas decide-se na coerência entre todos os setores. Podem continuar a achar que Lage caiu por causa dos almoços e das viagens dos jornalistas, que Jesus perdeu este campeonato por causa da Covid-19 e dos penaltis por assinalar ou que, caso não recupere da desvantagem, Conceição não será bicampeão por causa dos árbitros ou da sobrecarga europeia. Não têm razão, mas às vezes viver enganado também pode ser poético.