A partir de onde se pensa o jogo
O futebol não tem verdades absolutas - só interpretações de uma mesma realidade, concordantes com o momento a partir do qual se pensa o jogo. E as soluções de ontem podem ser os problemas de amanhã.
Nunca acreditei em homens nem em soluções providenciais. Sendo um desporto coletivo com elevada componente individual, o futebol tem momentos em que se desmente a si próprio: está em voga no Twitter, por exemplo, uma “thread” em que se chama a atenção para a excelência defensiva de uma Itália sem “armários” à frente da defesa, mas o que isso me diz é que essa é uma ideia válida para esta equipa de Itália neste momento da sua evolução e perante os dois adversários que lhe foram dados a enfrentar. Quando Fernando Santos desenterrou o 4x2x3x1 procurei achar utilidade a um sistema que considero bastante difícil de operacionalizar, mas o jogo contra a Hungria veio contrariar a ideia que julguei adivinhar no selecionador nacional. E o que é que isso nos diz? Que aquele jogo foi ganho de outra forma. Só isso. Porque cada jogo tem a sua maneira.
Ainda hoje, em entrevista a O Jogo, Laszlo Bölöni, treinador campeão pelo Sporting em 2002, veio elogiar a dupla Danilo-William. “São uma muralha. Foram decisivos para que Portugal conseguisse dominar o meio-campo e controlar os ataques da Hungria”, disse o romeno, no caso a pensar o jogo a partir do momento defensivo. Nessa equipa do Sporting de 2002 estava Rui Jorge, atual selecionador nacional de sub21, que ainda recentemente compôs um meio-campo com Bragança, Vieirinha, Gedson e Fábio Vieira. Nenhum destes quatro médios é forte nos momentos defensivos, no jogo sem bola, mas os quatro juntos têm duas particularidades: asseguram muita posse, quase tornando irrelevante essa fragilidade, e a sua qualidade de passe, receção e desmarcação garante um envolvimento que dá à equipa boas perspetivas de vir a encontrar-se em boa posição para fazer golos. Porque a verdade é que só há uma bola em campo. E é aqui que está a chave para entender o jogo: é pensá-lo a partir da bola e do que queremos fazer-lhe e depois analisá-lo à luz daquilo que o adversário está a fazer, porque ninguém está sozinho no campo.
Temos aqui, portanto, uma série de variáveis, relacionadas com os quatro momentos do jogo de futebol, a defesa, o ataque e as duas transições. Para entender o que vou escrever a seguir é preciso ver que acumular William e Danilo em campo não implica jogar em 4x2x3x1: Santos já teve os dois em campo muitas vezes e, a não ser em momentos específicos, nos quais quis defender vantagens, não terá jogado em 4x2x3x1 antes do recente particular com a Espanha, quando o duplo-pivot até foi formado por Danilo e Sérgio Oliveira. E isto é uma lição para quem cataloga jogadores e se arreiga a essas ideias fixas: “este é médio-defensivo”, “este é um oito”, “este é médio de ataque”… Antes deste Europeu – e do reconhecimento de que era preciso encontrar um papel mais central para Bruno Fernandes no sistema, para não o ter amarrado a uma lateral – William jogava mais à frente do que fez agora no desafio com a Hungria e da inversão do triângulo de meio-campo, desdobrando a equipa entre o 4x3x3 e o 4x4x2.
A adoção do 4x2x3x1, feita para deixar Bruno Fernandes mais dentro do jogo, não se explica com a vontade de colocar dois tampões defensivos atrás dele, para que ele “não precise de defender”, porque isso é coisa que não existe num jogo onde toda a gente tem de defender e atacar. Explica-se com a noção de que as onze pedras têm de ser distribuídas pelo terreno de forma equilibrada de forma a evitar situações de inferioridade em zonas complicadas de gerir. Não sei dizer que a opção de Fernando Santos teve a ver com o momento defensivo – a tal “muralha” de que fala Bölöni e que a Itália despreza, como desprezou Rui Jorge nos sub21 – ou com o momento ofensivo – a ideia de meter Bruno Fernandes dentro do jogo. O que este jogo com a Hungria nos disse foi que a equipa esteve pristina sem bola, recuperando a posse muitas vezes ainda dentro do meio-campo adversário e que foi, de facto, nesse aspeto que baseou a sua superioridade em termos territoriais e de iniciativa. Mas também nos disse que – até por força de a Hungria, perdendo a bola tão cedo, nunca chegar a sair das trincheiras –, em posse, Portugal estava a concentrar as suas pedras onde elas não faziam falta, que era atrás e pelos lados do bloco adversário.
O problema exigiu a recolocação das pedras (muito mais importante do que as caraterísticas individuais de quem entrou ou de quem saiu), mas também podia ter sido resolvido com um ponta-de-lança mais posicional a esperar movimentos interiores dos alas em vez de sair à procura deles para combinar nas laterais, onde não havia adversários, todos concentrados por dentro – que, já agora, é onde estão as balizas. Mas nada do que valeu para este jogo tem de valer necessariamente para os que aí vêm. Os problemas de anteontem podem ser as soluções de depois de amanhã. Aliás, se houvesse a possibilidade de jogar outra vez este jogo, nada do que valeu em Budapeste teria de valer outra vez: bastava uma daquelas bolas iniciais ter entrado para tudo ser diferente. E dizer isto não é acertar no Totobola à segunda-feira. É admitir que um jogo de futebol é uma coisa tão complexa que não há receitas mágicas para o ganhar. A não ser, claro, ter melhores jogadores. E mesmo isso, muitas vezes, não chega.