A Liga Revelação faz sentido
É preciso estaleca para aguentar a ideia de “formar a ganhar”, sobretudo porque a ela está subjacente a oposta, a de “formar a perder”. Mas a educação e a formação não começam ali. Começam em casa.
A Liga Revelação é uma excelente ideia, tal como o Canal 11 é uma excelente ideia e como, antes, a colocação das equipas B a jogar a II Liga e a transmissão dos jogos do Campeonato de Portugal foram excelentes ideias. O problema das excelentes ideias, em geral, é que para serem reconhecidas têm de chegar ao público e o dia de ontem era a ocasião ideal para isso: por caprichos do calendário, Estoril e Leixões chegaram à última jornada da fase final da Liga Revelação em condições de discutir o título de campeão nacional de sub23 no confronto direto. Não vou dizer que o país tenha parado para ver, mas quem pôde fazê-lo e gosta de futebol a sério teve a curiosidade de assistir. Pois bem: acabou tudo à pancada, a mostrar que não há boas ideias que resistam à pressão de um título. E foi pena.
Começa por ter sido pena porque, segundo dizia ontem o Nuno Madureira nos comentários ao jogo (e eu não fui confirmar mas acredito), a Liga Revelação não costuma ser aquilo, não costuma ter jogos que nem sequer acabam, devido à indisciplina da equipa derrotada, mas sim partidas com média de faltas inferior às da Liga principal e tempo de jogo superior. Foi pena, também, porque em campo estavam, ainda por cima, duas filosofias diferentes para a área da formação, ambas igualmente válidas: uma, a do Estoril, mais feita de “scouting” e de investimento, radiografia da passagem da equipa da Traffic para a MSP Sports Capital, punha no onze inicial três brasileiros, um argentino e um francês; outra, a do Leixões, mais feita da criação de talento de raiz em casa, herdeira da tradição dos “bebés” de outros tempos, abria com dez portugueses em campo, alguns deles vindos da equipa que acabou o campeonato nacional de juniores de 2019 em terceiro lugar, à frente do Sporting de Gonçalo Inácio, Tiago Djaló ou Rodrigo Fernandes, por exemplo.
O jogo foi inevitavelmente marcado pelas expulsões. Foi justíssima a primeira, logo aos 10’, a deixar o Leixões reduzido a dez jogadores e a precisar de aguentar o empate para levar o título. Inescrutável a segunda, aos 59’, pois foi por palavras, que não me custa adivinhar depois do que todos pudemos ouvir, captado pelos microfones do Canal 11 logo por ocasião do primeiro vermelho. O segundo golo do Estoril, já nos descontos, a confirmar que a equipa da Linha ia ser campeã, desatou o nó da indignação leixonense e tudo o que se passou a seguir foi lamentável. A começar pelo facto de o jogo não ter sequer acabado, por ter sido precisa a intervenção da polícia para escoltar a equipa de arbitragem a caminho dos balneários, pelas declarações trogloditas de elementos supostamente responsáveis da equipa de Matosinhos. O treinador José Faria queixou-se de uma equipa de arbitragem “pouco pedagógica”, mas a julgar pelo que disse acerca de uma comentadora de futebol do Canal 11 e da necessidade de se deixar “o futebol para os homens do futebol”, não me custa acreditar que, no caso, a falta de pedagogia começa ali mesmo, no balneário.
É aqui que podemos pensar nas razões que levaram à criação desta Liga Revelação e naquilo em que ela se transformou com a pandemia e a interrupção da competição nos escalões de formação mais abaixo. A ideia era criar mais um escalão de evolução para os miúdos, que no caso dos grandes se coloca abaixo das equipas B – o FC Porto, por exemplo, nem participa – e permitir-lhes evoluir a competir. Com a paragem dos campeonatos dos escalões etários mais baixos, a Liga Revelação tornou-se mesmo o único escape competitivo para as equipas de formação, fazendo aumentar a pressão dos títulos. Ora todos sabemos que se há coisas que não jogam particularmente bem são as ideias de formação e competição, que a segunda pode trazer à tona o pior que existe na primeira, envolvendo jogadores, treinadores, diretores e até os pais dos miúdos, nos casos mais extremos. É preciso alguma estaleca para aguentar a ideia de “formar a ganhar”, sobretudo porque a ela está subjacente a ideia oposta, a de “formar a perder”. E, vamos lá ver, a Liga Revelação – como os campeonatos de sub19 ou até mesmo de sub17 – não foi criada para “formar homens” mas sim para lhes permitir subir mais um patamar na evolução competitiva, de forma a ajudá-los a tornarem-se atletas de exceção. A formação dos homens deve acontecer antes, em casa e nos treinos. E foi essa que falhou redondamente.
Não faltarão vozes no sentido de dizer que se é para nos apresentar vergonhas como a de ontem, mais vale acabar com aquilo. Não concordo. O que vi ontem, muito graças, é verdade, à ausência do FC Porto e ao facto de Benfica, Sporting e SC Braga terem os principais atletas do escalão a competir nas equipas B, na II Liga e no Campeonato de Portugal, foi a hipótese de nivelar o escalão competitivo que marca a entrada no profissionalismo. A Liga Revelação faz sentido e vou mesmo mais longe: devia ser obrigatória para equipas que queiram competir nas Ligas profissionais, como forma de assegurar uma base para os plantéis acima. Da mesma forma que devia ser expurgada do trogloditismo, porque o orgulho “de quem não gosta de levar desaforo para casa” mais não é do que má educação. E essa devia começar por se resolver com um pedido de desculpas.