A Liga dos remendados
Começa hoje mais uma Liga espanhola. O clube que mais investiu não pode inscrever jogadores e mais de metade dos participantes quase nem se mexeram no mercado. Há alguém a pensar em assimetrias?
A Liga espanhola arranca hoje com um misto de sensações difícil de explicar. Há fartura, tendo em conta os mais de 150 milhões de euros investidos pelo FC Barcelona no reforço da equipa à disposição de Xavi Hernández ou a forma como o Real Madrid avançou por Mbappé, ainda que só para ouvir “não” do atacante francês. O dinheiro, no entanto, estaria lá para completar a operação. Mas também há carestia – e para a descobrirmos não é preciso sair de Camp Nou, porque a pouco mais de 24 horas do seu primeiro jogo, o Barça ainda não pôde inscrever um único dos reforços que contratou nem os jogadores com quem renovou contrato neste Verão. Esta Liga será a história de uma fuga desesperada de um clube que olha para a frente e quer acompanhar a passada do maior rival, mas ao mesmo tempo olha para trás e recusa-se a ceder a um cenário de devastação, de um campeonato de remendados. Porque é nisso que está a transformar-se a outrora multimilionária Liga espanhola.
A história do Barça é um caso à parte. Pode resultar ou não – isso quem vai definir é a bola, por mais alavancas financeiras geradas pela cessão de ativos e património que Joan Laporta invente para dizer à Liga de Javier Tebas e aos seus inspetores financeiros que tem condições para pagar tudo aquilo com que está a comprometer-se. A questão é que se o FC Barcelona está na iminência de entrar amanhã em campo sem as estrelas que contratou – Lewandowski, Koundé, Raphinha, Kessié e Christensen –, sem os jogadores com quem renovou contrato – Sergi Roberto e Dembelé – e seguramente sem nenhum dos que ainda pretende juntar ao rol – Marcos Alonso e Bernardo Silva, por exemplo – a verdade é que vai defrontar um adversário que só recebeu gente a custo zero. O Rayo Vallecano, primeiro opositor dos culés nesta Liga, tal como o Athletic Bilbau, gastou “zero” no mercado de transferências. E os dois não estão sós nesta nova realidade: Real Valladolid, Valência CF, FC Girona, Osasuna, FC Cádiz e Villarreal CF também ficaram todos abaixo dos cinco milhões de euros de investimento nos plantéis. Ora cinco milhões de euros foi o que pagou, por exemplo, o SC Braga ao FC Famalicão por Banza.
Estando num patamar acima de Portugal, onde se vende como forma de vida, para sobreviver e cumprir orçamentos, os clubes espanhóis habituaram-se a dois tipos de vendas. Por vezes, as maiores estrelas saíam para outra Liga das Big Five, com a qual os espanhóis se colocavam em pé de igualdade, comprando e vendendo e encontrando nessas vendas o reforço de capital que depois lhes permitia – a todos e não só aos grandes, como agora – entrar de forma decisiva pelos mercados periféricos em busca das estrelas promissoras. Mas o mais frequente mesmo era vermos funcionar o mercado interno. Ora este morreu, porque não só não há dinheiro como a Liga pôs em prática mecanismos draconianos de controlo do investimento para impedir falências. Estão aqui as causas do imobilismo de um mercado que costumava fazer várias vezes o nosso mas onde, esta época – descontando as loucuras de Real Madrid e Barça – as diferenças não foram assim tão grandes. Se somarmos o valor movimentado pelas dez transferências mais caras feitas por clubes da Liga Espanhola neste mercado chegamos a um total de 310 milhões de euros – dos 411 que circularam no total. As dez transferências mais caras feitas por clubes da Liga Portuguesa ficaram-se pelos 110 milhões, num mercado total de cerca de 150 milhões de euros.
Mas quererá isto dizer que a Liga Espanhola faz três da portuguesa em termos de capacidade de investimento? Talvez. Mas, lá como cá, grande parte do investimento é feito por um grupo muito restrito de clubes. Em Espanha, o Real Madrid – gastou 80 milhões em Tchouameni – e o FC Barcelona – 153 milhões em Raphinha, Koundé e Lewandowski – responsabilizaram-se por 56 por cento do investimento. Em Portugal, os três grandes gastaram 87 por cento do valor total. Isto leva a que, assim que se alarga o crivo, diminuam as diferenças: só há dois milhões de euros de diferença entre o valor que custou a décima transferência mais cara de um clube espanhol esta época – a opção de compra de Willian José pelo Betis à Real Sociedad, por 10 milhões de euros – e a décima transferência feita por um clube português – a passagem de Bah do Slavia Praga para o Benfica, por oito milhões. A diferença, que existe, é feita por um conjunto de clubes de segunda classe, que em Espanha ainda guardam alguma capacidade de investimento e que em Portugal já vivem há muito como remendados. Mas a tendência é clara e, por lá, é de descida: antes da pandemia, o mercado mexia em Espanha com mais de mil milhões de euros a cada Verão.
É deveras curioso que em Barcelona se acredite que a Liga está a castigar o clube por ter feito parte do projeto de lançamento da Superliga Europeia, recusando-se por vingança a aceitar os efeitos práticos das sucessivas alavancas financeiras com que Laporta pretende justificar a capacidade de investimento, mas ao mesmo tempo comece a ser claro e cristalino que, por mais necessárias que sejam – e são –, as medidas de austeridade estejam a levar à extinção do mercado interno e a condenar a Liga Espanhola a uma cada vez maior assimetria entre os grandes e os outros. Javier Tebas não quer a Superliga, não gosta de um projeto que extirparia a Liga Espanhola das suas duas maiores fontes de receita e motivos de interesse. Mas está, a cada ano, a mostrar ao Mundo que ela é inevitável. E a culpa não é dele. É que por mais que queiramos impedi-las, há coisas que continuarão a acontecer. O Sol nascerá amanhã a Leste, por-se-á a Oeste, e os campeonatos nacionais serão cada vez mais passeios para os clubes que extravasam a dimensão nacional dos seus países. E contra isto... batatas.