A largueza da seleção
Se há expressão que marque a vitória da seleção no Luxemburgo ela é largueza. Porque os primeiros golos saíram de um futebol largo e os últimos do alargar da passada à esquerda.
O Portugal de Roberto Martínez fez o que tinha de fazer nestes dois jogos: duas vitórias, seis pontos, dez golos marcados e zero sofridos. Não vamos deixar que a euforia tome conta de nós, que os adversários eram dois refrescos, à partida as duas equipas mais fracas do grupo, mesmo tendo em conta os progressos recentes do Luxemburgo. Mas nenhuma equipa pode ganhar a não ser ao opositor que tem pela frente e, nesse particular, a seleção fez aquilo que tinha a fazer, deixando de caminho algumas boas indicações – e as duas principais foram uma propensão para um futebol mais largo e em certa altura mais explosivo, o que até será para muitos um sinal de regressão, porque reduz a influência do tradicional jogo de toque sempre curto. Nem sempre a equipa o fez, é verdade, que também teve momentos de miopia, mas há sinais nas escolhas e no futebol do novo selecionador de que ele valoriza a dimensão física do jogo. E, não sendo a única ou sequer a mais importante, ela não pode ser negligenciada. Esses sinais surgiram à vista de todos na maior parte dos golos, permitindo que a seleção arrumasse a questão antes mesmo de ela se colocar: cruzamento largo de Bruno Fernandes e potência no salto de Nuno Mendes antes do primeiro de Ronaldo; cruzamento largo de Bernardo Silva para o golo de cabeça de João Félix, entre central e lateral, no 0-2; mais um cruzamento largo de Palhinha, a permitir o primeiro golo de cabeça de Bernardo Silva pela equipa nacional. Não foram balões para a área à espera de uma benesse. Foi a exploração premeditada do espaço, fruto de uma estratégia previamente desenhada para o encontrar. Se há expressão que marca o jogo da seleção no Luxemburgo ela é “largueza”. Porque foi a partir do alargar da passada de uma ala esquerda composta a partir de determinada altura por Nuno Mendes e Rafael Leão que a equipa voltou a acordar da letargia em que caíra após o 4-0, construindo mais dois golos e ganhando uma grande penalidade que o atacante do Milan desperdiçou. Talento, esta equipa sempre teve. O segredo para a fazer subir de patamar está na capacidade para meter no plano de jogo o físico sem anular o técnico. Essa parece ser a preocupação de Roberto Martínez, evidente na escolha de alguns jogadores de passada larga, de outros que são fortes nos duelos. Todos juntos, são capazes de fazer crescer os génios da lâmpada que tiram uma solução mágica da cartola nos espaços curtos. O futebol tem de ser isto: complementaridade. Nisso, pelo menos, a equipa está no caminho certo.
A dúvida que sobra. Mas voltemos à realidade: os adversários foram os mais fracos. Sobram, por isso, muitas dúvidas, que só começaremos a esclarecer em Junho, quando vierem aí a Bósnia e a Islândia, duas equipas de dimensão média. Muitos quererão falar de nomes, de um reforçado Cristiano Ronaldo – quatro golos – ou de Gonçalo Ramos, dos mais físicos Palhinha, Nuno Mendes ou Leão ou dos mais técnicos Rúben Neves, Guerreiro ou Félix. Martínez esteve bem ao dizer que falar a partir daqueles que não jogaram é desde logo sair de uma dinâmica errada – e até me parece que ele conta com todos. Por isso a minha dúvida não tem nada que ver com nomes, mas sim com um conceito. Portugal mostrou sempre, nestes dois jogos, um bloco muito coeso e compacto, só possível pela altura a que se posicionou a sua última linha: em momento ofensivo, os centrais estiveram sempre bem dentro do meio-campo adversário. Se contra o Liechtenstein isso nunca foi sequer um problema, porque o adversário nunca quis jogar, ante o Luxemburgo já assistimos a algumas tentativas de exploração do espaço deixado atrás desta última linha. E para evitar isto, esta equipa vai precisar de ser muito pressionante na frente, de evitar que o adversário tenha tanta bola descoberta, tanto tempo e espaço para levantar a cabeça, olhar e decidir com critério onde pode solicitar a profundidade. Porque isto não se resolve só com defesas rápidos na recuperação: é fundamental ter avançados capazes de dar uma resposta eficaz no momento da perda da bola ou do início da organização ofensiva do adversário. Em Junho começaremos a ver do que esta equipa é feita.
Uma Liga que me divide. Abro a boca de admiração com o fenómeno Kings League, porque ele mostra o caráter empreendedor e moderno de um ex-futebolista, Gerard Piqué, que fez o que toda a gente sonha fazer: olhou para o Mundo e encontrou a chave que o resolvia. Só por isso meteu mais de 90 mil pessoas no Camp Nou para ver a Final Four da competição de futebol de sete que junta gamers, streamers e antigas estrelas dos relvados em animadas transmissões na Twitch. Mas ao mesmo tempo cerro os punhos de irritação com o fenómeno Kings League, porque ele enfatiza tudo aquilo que me aborrece na modernidade, a cultura do efémero, do fogo de artifício, ao abrigo da qual parece que o Mundo tem de ser consumido a velocidade supersónica e nada pode ser verdadeiramente apreciado, em nome da qual deixa de haver jogos para haver versões condensadas, deixamos de ter onze jogadores em campo para termos sete, deixa de haver pensadores para haver influencers. Na tristemente célebre aparição no Chiringuito na qual pretendeu defender mas acabou por enterrar a SuperLiga, o presidente do Real Madrid, Florentino Pérez, queixava-se de que as novas gerações já não viam jogos de futebol, que não ficavam hora e meia a fazer a mesma coisa. Achava Florentino que isso se resolvia multiplicando ad nauseam os confrontos entre as maiores equipas do Mundo, mas o mais certo é que estivesse enganado. Não o sabemos... Quem encontrou a fórmula foi Piqué, o ex-capitão do FC Barcelona que se associou ao streamer Ibai Llanos para a explorar: jogos mais curtos, pior futebol mas mais espetáculo, personificado por gente que sobreviveu ao fim da carreira, nem que tenha sido a fazer macacadas e a dizer alarvidades, e por gente cuja carreira foi sempre fazer macacadas e dizer alarvidades. A Kings League é um mero produto de marketing, mas é muito mais do que a vitória da forma sobre a substância. É a interpretação do Mundo tal como ele está. É o futuro? Não. Vai morrer rápido, porque esse é o seu âmago. E dará lugar a outro fenómeno, também ele destinado a ser um sucesso estrondoso e a morrer ainda mais rapidamente do que ela. É por isso que a admiro ao mesmo tempo que a verbero. Mas eu é que estou a ficar velho. O Mundo, esse, está cada vez mais jovem.