A incoerência que desgraçou o Rio Ave
O Rio Ave não desceu por ter andado a fazer boa figura nas pré-eliminatórias da Liga Europa. O Rio Ave desceu porque não acreditou no rumo que escolheu.
De um ano para o outro, o Rio Ave perdeu 21 pontos. Foram-se 38 por cento dos pontos que na época passada lhe garantiram a quinta posição na tabela da Liga, na ocasião a última a dar qualificação europeia. O clube ficou sem o treinador, Carlos Carvalhal, viu partir alguns dos seus jogadores mais importantes, como Taremi, Nuno Santos ou Matheus Reis, mas perdeu acima de tudo coerência, o que o levou a ser incapaz de garantir continuidade a qualquer das sucessivas estruturas técnicas que escolheu, acabando agora a lamentar uma improvável descida de divisão, apesar de todos os sinais de alarme que soam sempre para quem está na mesma situação dos vila-condenses.
É por muitos elogiada a condução rigorosa de António Silva Campos, presidente do Rio Ave desde 2008. O líder que encontrou o clube acabado de subir da II Liga e em dificuldades para garantir a permanência transformou-o num exemplo de cumprimento e estabilidade, dando-lhe condições para acabar na metade superior da tabela nas últimas cinco temporadas, três delas marcadas por qualificações europeias. Cai assim por terra o mito urbano de que é muito difícil a época a seguir à da qualificação europeia e de que, tal como Ícaro, a equipa que se aproxima em demasia do Sol sem para tal estar preparadas acaba por ver derreter as asas de cera e cair desamparada. O Rio Ave andou nas pré-eliminatórias europeias de 2016 e 2018, no seguimento de um sexto e de um quinto lugares na Liga portuguesa, tal como já jogara a fase de grupos da Liga Europa em 2014, depois de perder a final da Taça de Portugal, e nunca passara por aquilo que passou esta época. Se em 2014/15 até ganhou um lugar (de 11º para 10º), em 2016/17 deixou fugir um ponto (de 50 para 49, equivalendo à perda de uma posição) e em 2018/19 viu avolumar-se as perdas mas ainda as manteve controladas (já se foram seis pontos, de 51 para 45, com queda de duas posições).
A queda desenfreada de 2020/21 – foram-se 21 pontos, de 55 para 34, e onze lugares – não tem a ver com esse mito que só o FC Arouca confirma. Os carrascos dos vila-condenses no play-off foram, na última década, a única equipa a acumular na mesma temporada as pré-eliminatórias da Liga Europa e a descida de divisão, o que lhes sucedeu em 2016/17. Portanto, se alguma vez lerem ou ouvirem dizer que o Rio Ave desceu porque teve de medir forças com equipas como o Besiktas – afastado pelos vila-condenses e depois campeão turco – ou o Milan – que só ganhou a eliminatória nos Arcos nos penaltis e depois andou boa parte da época em primeiro na Serie A – podem dizer com toda a propriedade que isso é treta. O Rio Ave desceu de divisão porque não foi coerente no rumo escolhido. Sim, é a questão da instabilidade dos treinadores e, além dela, dos perfis escolhidos e da capacidade que eles têm para escolher os jogadores. Foi aí e não numa incompetência que por mais que se busque não se encontra que o Rio Ave perdeu o ano.
O clube vinha de um excelente quinto lugar, com um treinador de personalidade vincada e de estilo de jogo coerente com essa mesma personalidade, como é Carlos Carvalhal. O técnico saiu, seguiu para Braga, e a escolha de António Silva Campos passou por Mário Silva, ex-campeão nacional e europeu nos juniores do FC Porto, que entretanto experimentara uma curta passagem pela UD Almería, na II Liga espanhola. Silva terá feito um plantel à sua imagem, substituindo por exemplo Diego Lopes (que saiu para Singapura) por Francisco Geraldes, apostando em Dala ou André Pereira para ocupar a vaga deixada por Taremi e em soluções internas como Pedro Amaral ou Gabrielzinho para suprir as perdas de Matheus Reis ou Nuno Santos. A derrota em casa com o Marítimo, à 11ª ronda, levou à chicotada: depois de uma presença promissora nas pré-eliminatórias da Liga Europa, a equipa era 13ª e tinha o pior ataque da competição, com apenas seis golos marcados. Entrou Pedro Cunha, vindo da equipa B, mas não durou muito: menos de um mês depois, no seguimento de uma derrota caseira com o Santa Clara, foi substituído por Miguel Cardoso, o treinador que liderara a equipa até ao quinto lugar de 2018.
À medida que foi mudando de treinador – e de ideias – o Rio Ave foi também acolhendo novos jogadores, como Rafael Camacho, Pelé ou Fábio Coentrão, que regressou da reforma para ajudar. Mas isso não era suficiente para mudar a identidade de uma equipa que tinha sido construída de acordo com uma ideia mas à qual agora se pedia que fizesse as coisas de maneira diferente. De uma maneira que, a ser assumida desde o início, provavelmente teria levado à escolha de outros jogadores. Parece impossível olhar para um grupo que tem Kieszek, Ivo Pinto, Pelé, Coentrão, Aderlan Santos, Tarantini, Felipe Augusto e a possibilidade de somar na frente Geraldes, Mané, Camacho e Dala e perceber que se está a olhar para o plantel de um despromovido. Mas não. O Rio Ave não desceu por estar dividido entre a Liga Europa e a Liga Portuguesa. O Rio Ave desceu por não ter escolhido uma forma coerente de estar e de jogar durante um campeonato a que a pandemia retirou tempo para recalibragens. Se houve coisa que esta época mostrou, desde o Sporting-campeão até ao último colocado, foi que a coerência paga. E que a sua falta traz castigo. No caso do Rio Ave, ele está bem à vista nas lágrimas de Augusto Gama, o interino que acabou o playoff depois da saída de Miguel Cardoso.