A importância de um jogo. Ou dois
A diferença entre sucesso e insucesso não passa por jogar à defesa ou ao ataque. Passa por entendermos as incoerências no que foi feito e por sermos capazes de as transformar em dúvidas no adversário.
O Portugal-Turquia de mais logo (19h45, RTP1) é um jogo fundamental para o futuro próximo da seleção nacional, mas em si não vale nada a não ser a hipótese de jogamos outro desafio ainda mais crucial, na próxima terça-feira, então sim a “final” para sabermos se vamos ou não estar no Mundial. Esta geração de jogadores – e de adeptos – não sabe muito bem o que é falhar um Mundial ou um Europeu, mas isso é algo em que a geração do seu treinador – ou a minha, que ainda assim sou 15 anos mais novo do que Fernando Santos – dá cartas. Então vou explicar-vos: é um atraso de vida.
Nasci em 1970, que foi quando Fernando Santos começava a dar os primeiros pontapés, nos juniores do Benfica. Mas só celebrei a primeira qualificação nacional para uma fase final em 1983, numa tarde de chuva de Novembro em que Portugal venceu a URSS na Luz, com um penalti ganho por Chalana e finalizado por Jordão. Esse jogo também teve um preâmbulo, um Polónia-Portugal em que precisávamos de ganhar (e ganhámos, por 1-0) e no qual pudemos começar a familiarizar-nos com conceitos de geopolítica agora em voga, pois o público polaco torcia por nós para se vingar da opressão soviética. A segunda qualificação, dois anos depois, ficou ligada ao milagre de Estugarda, àquele míssil teleguiado do Carlos Manuel no fundo da baliza do Schumacher, mas também teve meia-final. Teve duas meias-finais, aliás. Uma, miserável, uns dias antes, na Luz, foi uma vitória sofrida e de virada sobre a frágil equipa de Malta (3-2), a soltar o “Deixem-me sonhar” do selecionador José Torres. A outra, no próprio dia do jogo de Estugarda, viu a Suécia perder na Checoslováquia, deixando a equipa nacional a depender apenas de si própria e da capacidade para fazer aquilo que nunca ninguém tinha feito: ganhar à Alemanha, na Alemanha, em jogo do Mundial.
Tanto o Euro’84 como o Mundial’86 surgiram já tarde para craques como Oliveira, Humberto, Alves ou Manuel Fernandes, que passaram toda a careira sem saber o que era jogar uma fase final. Depois, seguiram-se dez anos de ausências, até 1995 e à vitória clara sobre a República da Irlanda, na Luz, a valer a qualificação para o Europeu de Inglaterra e a primeira fase final da “geração de ouro”, já sem o professor Queiroz. Ainda estive em Berlim, em 1997, numa “meia-final” como a de hoje, onde o empate com a Alemanha significou que ficaríamos fora do Mundial de França, sucedesse o que sucedesse na última jornada. E pronto: acaba aí a história recente de falhanços da seleção portuguesa em fases de qualificação. De 2000 para cá, só três outras nações europeias estiveram em todas as fases finais: França, Alemanha e Espanha. Já tivemos de jogar play-offs, com a Bósnia, mas se isto serve para enfatizar a importância extrema dos dias que vêm aí, nada se comparará na carreira dos jogadores à sensação de ficar em casa a torcer pelos colegas de clube na fase final de um Mundial ou de um Europeu.
Durante 20 anos de presenças ininterruptas em fases finais, a seleção de Portugal cresceu de uma forma avassaladora. Prova? Hoje já ninguém apresenta o golo não validado a Ronaldo em Belgrado, que chegaria para nos termos qualificado e estar a Sérvia a jogar este play-off, como justificação para o que estamos a viver. Em contrapartida, ainda há muito quem lembre a expulsão de Rui Costa em Berlim, em 1997, como a razão para termos falhado o Mundial de 1998. Não que esta equipa tenha mais talento. Acho que não tem, que nenhuma geração do futebol português se equipara à de Baía, Couto, Sousa, Rui Costa, Figo e João Pinto. A geração atual está é num patamar superior de exigência, atingido graças a anos de presenças seguidas em fases finais, à habituação que causou, tanto nos adeptos como nos jogadores, não só de lá estar como até de ter de discutir títulos. A exigência é uma coisa boa, mas torna-se nociva quando nos leva a esquecer as nossas próprias carências. E esta equipa, que acompanho de perto há décadas, tem carências. Sempre teve carências. Acreditar que, de repente, só porque a responsabilidade é tão grande e o castigo pode ser maior ainda, se vão resolver todos os problemas é ser ingénuo ou, pior ainda, achar que jogadores e treinadores não os resolveram antes porque se estiveram nas tintas.
A geração de ouro, que jogava de olhos fechados e que terá conhecido o epílogo no Mundial de 2006, marcou uma era na equipa de Portugal. E também tinha defeitos: jogava muito mas marcava pouco, era superior na construção e na criação porque abdicava de ter gente na zona de definição. Por isso mesmo, assemelhava-se a uma equipa de bilhar livre, era “campeã do Mundo de futebol sem balizas”. Não ganhou nada. Conseguiu duas meias-finais (2000 e 2006) e um segundo lugar (2004). A equipa atual, com muitos elementos que terão este ano a última oportunidade de jogar uma fase final – Patrício, Pepe, Fonte, Moutinho, Ronaldo... – é muito mais concreta, mas menos vistosa, menos coletiva. Beneficiou na criação de uma nova prova – a Liga das Nações – mas já ganhou duas competições (2016 e 2019). Curiosamente, ganhou o Europeu no ano em que teve menos talento disponível. E fê-lo por uma razão muito simples: foi quando teve mais consciência do seu próprio corpo, do que fazia bem e do que fazia mal, colocando todas as fichas na capacidade para levar o jogo para onde mais lhe convinha e para impedir que ele fosse para onde não lhe dava jeito. Era uma equipa com imensos problemas táticos – jogava num sistema ao qual dificilmente se adequava, por exemplo – mas que tinha uma ideia consentânea com aquilo de que os seus jogadores precisavam para se exprimirem melhor.
O que é que isto nos diz? Que devemos jogar “à defesa” como em 2016? Não. Isso não existe. Diz-nos que o sucesso passa por termos a noção perfeita do que queremos tirar do jogo, pela capacidade estratégica de mexer com ele e levá-lo para onde mais queremos. E o que mais queremos nem sempre é o mesmo – nem sequer quando se fala da mesma equipa, quanto mais de equipas separadas por seis anos. O sucesso de Portugal hoje e na terça-feira passa por aí. Passa por todos – os treinadores e os jogadores... – entenderem o que têm feito mal, compreenderem a incoerência entre as caraterísticas de uns e de outros, de forma a impedir que elas funcionem contra nós, mas que sirvam para introduzir a dúvida no adversário. O risco é grande, o castigo se correr mal será maior ainda.
Lembro-me bem de mundiais e europeus sem Portugal, comigo a torcer pela Alemanha (primeiro a RFA) e pela Inglaterra. A primeira competição de que tenho memória em condições é do mundial de 86, a alegria de ganhar à super (para mim) Inglaterra, a tristeza de estragarmos tudo com as duas seleções supostamente mais acessíveis. Depois, foi preciso esperar até 96, ver os jogos na TV num grupo animado, Portugal a dar espetáculo até à eliminação precoce por causa do raio do Poborsky. A partir de 2002, então, e ultrapassado o trauma do roubo do árbitro francês, Portugal habituou-me mal. Sempre presente sempre a fazer boa figura, sobretudo nos europeus. É sempre um mês com ambiente diferente. Confesso que este mundial, no catar e em Dezembro, seduz-me zero. Gostava que Portugal lá fosse, mas confesso que me doía mais ser eliminado de um mundial a sério. Dito isto, ainda bem que somos exigentes, até porque temos gente com muita qualidade. Mas convém não esquecer o caminho percorrido. Agora vamos lá, porque já não me apetece torcer pela Alemanha nem por Inglaterra!
Eu sou de 92, sou daqueles que não sabe o que é falhar uma fase final e sou daqueles que não esqueceu nem nunca vai esquecer o sentimento de perder aquela final contra a Grécia. Marcou-me muito mesmo, se calhar pela idade. E posso dizer que a partir de 2006 nunca mais vi a seleção jogar um jogo apetecível, aquele jogo que nos empolga a todos, olhamos para os jogadores e e eu posso dizer que por vezes não percebo o porquê de não bater certo, porque é que não conseguimos jogar um futebol mais bonito, mais apoiado, com bola no pé. É de facto muito estranho, espero que o nosso engenheiro tenha refletido sobre isso e que tire um coelho da cartola hoje a noite. Vamos Portugal 💪