A guerra do tempo útil
A primeira jornada da Liga teve menos 49 faltas do que há um ano, mas só ganhou 1,3 por cento no tempo útil de jogo. Ainda há muito trabalho a fazer para interromper este círculo vicioso.
Vamos a boas notícias: foram assinaladas na primeira jornada da Liga menos 49 faltas do que na entrada do campeonato da época passada. São menos 49 interrupções, cinco e picos por jogo, que se refletem em mais uns três minutos de tempo útil de jogo por cada um dos nove desafios. Ainda assim, o tempo realmente jogado nestes nove jogos de abertura da Liga não foi assim tão melhorado relativamente à última temporada: andou nos 55,8 por cento contra a média global de 54,5 por cento com que finalizou a época de 2021/22. O que quer dizer que não são só os árbitros quem tem de melhorar para tornar o espetáculo mais fluído e atrativo para quem paga. Precisamos de mais jogos em que ambas as equipas entram em campo a achar que podem verdadeiramente ganhar.
Neste aspeto, a Liga começou bem, com o esforço de Manuel Mota em deixar jogar, logo no jogo de abertura, o Benfica-FC Arouca. De acordo com os dados oficiais da Liga, o árbitro de Braga assinalou apenas 12 faltas, o mais baixo total desta primeira jornada negativamente marcada por quatro jogos acima das 30 interrupções, algumas delas escusadas: houve 30 no GD Chaves-Vitória SC, 31 no SC Braga-Sporting, 35 no Rio Ave-FC Vizela e 36 no Gil Vicente-FC Paços de Ferreira. Há um ano, a primeira jornada tinha tido cinco jogos acima das 30 faltas – num deles, o FC Paços de Ferreira-FC Famalicão, Miguel Nogueira tinha mesmo dado um concerto de apito, com 53 faltas assinaladas – e, curiosamente, o jogo menos faltoso também tinha sido o inaugural, na altura o Sporting-FC Vizela, com 25 infrações. É um pouco como se os árbitros só tivessem memória de curto prazo e, à medida que iam passando os dias sobre as indicações recebidas, certamente a meio da semana, se fossem esquecendo de que a ideia é deixar jogar e não estarem a apitar a cada vez que um jogador cai no chão, interrompendo o fluxo do jogo.
Não é justo, porém, colocar sobre os ombros dos homens do apito todo o ónus da questão. Até porque o jogo com maior percentagem de tempo útil nesta primeira jornada, o Santa Clara-Casa Pia – que foi também, curiosamente, o que teve menos gente a assistir no estádio – teve um total de faltas absolutamente mediano: 27. Somando os nove jogos, esta primeira jornada da Liga viu 895 minutos e 56 segundos de jogo, dos quais a bola esteve efetivamente a rolar em 500 minutos e 45 segundos. Isto é: jogou-se em 55,8 por cento do tempo. Os outros 44,2 por cento, mais de seis horas e meia, perderam-se. São quase três quartos-de-hora por cada um dos nove jogos, que não podem ser assacados apenas à propensão dos nossos árbitros para se defenderem através do apito. Pode consultar a lista do tempo de jogo total e efetivo de cada jogo desta primeira jornada na imagem, retirada do site da Liga Portugal – para mais detalhes, siga o link clicando em cima dela.
Em Fevereiro, o CIES do Observatório do Futebol fez um estudo ao tempo útil de jogo de 36 Ligas Europeias, concluindo que aquela onde se jogava durante mais tempo por desafio era a neerlandesa, com 63 minutos e 21 segundos. Portugal surgia num modesto 31º lugar entre as Ligas estudadas, com 57 minutos e nove segundos, que nos permitiam aparecer apenas à frente das Ligas grega, escocesa e checa e das segundas divisões inglesa e espanhola. Pode consultar aqui o estudo. A Liga portuguesa tanto tem noção de que é preciso melhorar isto que instituiu este ano um prémio para a equipa cujos jogos tiverem mais tempo útil de jogo, mas é importante que se entenda que isso e a sensibilização aos árbitros, por si só, não chega. Basta ver que dos nove jogos da primeira jornada nesta nova época, só três ficaram acima do patamar em que estávamos em Fevereiro, os tais 57 minutos e nove segundos. Há aqui muito trabalho a ser feito por jogadores, técnicos e comentadores, que por sua vez formam os adeptos.
Os jogadores têm de entender que o jogo precisa de fluir e que acima dos seus interesses particulares está a necessidade de melhorar a qualidade do espetáculo. Já está instituído que os simuladores grosseiros serão punidos. Esperemos que isso reduza a busca do penalti ou do livre perigoso ou até da punição disciplinar para o adversário, nascida daqueles momentos em que os jogadores são tocados com a ponta de um dedo e parece terem sido agredidos com um pau, como dizia Jorge Jesus. “Oh o quê, pá? Levaste com um pau?!”. Mas é preciso que os árbitros tenham também a coragem de deixar de apitar sempre que um defesa, de costas para o jogo, com a bola controlada e dificuldades na saída, espera por um adversário, empina o rabo assim que o sente chegar e cai para a frente, de forma a ganhar uma falta – que lhe dá sempre mais opções. Porque a batalha pelo tempo útil de jogo não se ganha só na erradicação das simulações grosseiras. É preciso que os comentadores comecem a denunciar estes comportamentos em vez de andarem de lupa à procura de descobrir um contacto que justifique as quedas. “Sim, há ali um contacto”, dizem, dessa forma educando os adeptos para a busca do toque infinitesimal e para o protesto sempre que um dos seus cai e não é marcada falta – dessa forma iniciando o círculo vicioso que se conclui com os tais concertos de apito de que falava atrás.
Até aqui, tudo fácil. O verdadeiro problema vem a seguir. Porque é preciso que os treinadores passem uma mensagem positiva aos seus jogadores em vez de os incentivarem à perda de tempo na defesa de interesses particulares. A questão é que nenhum prémio compensa a satisfação de ganhar ou empatar um jogo contra um adversário muito mais forte. E isso, na maior parte das vezes, só se consegue pela manha, baixando ritmos e reduzindo tempo de jogo. Há uma maneira de resolver isto, mas ninguém vai gostar de a ler: é reduzir a diferença entre os competidores, diminuindo a percentagem de jogos entre grandes e pequenos. Só com mais partidas em que ambos sentem que têm as mesmas hipóteses de vencer é que se ganhará a batalha pelo tempo útil de jogo. E isso ainda vem muito longe.
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