A final que merecemos
A abertura às contradições faz com que FC Barcelona e Paris Saint-Germain sejam os meus preferidos para a final da Champions. Mas entre hoje e esse momento ainda há um certo Real Madrid. Ou o Arsenal.

Palavras: 1379. Tempo de leitura: 7 minutos (áudio no meu Telegram).
Ainda faltam oito jogos, mas merecemos uma final da Liga dos Campeões entre o Paris Saint Germain, equipa de autor montada por Luis Enrique em contraciclo com aquilo que foi a política mais recente do clube, e o FC Barcelona, gigante falido que alia grandeza interior, um futebol objetivo e o talento da melhor formação do Mundo. Ainda faltam oito jogos, as coisas podem correr de outra maneira, mas não haveria melhor forma de terminar a temporada do futebol europeu antes de nos lançarmos no Mundial de clubes que nos vai arruinar – a nós e a eles, aos jogadores – quaisquer possibilidade de férias sem bola este ano. Ainda faltam oito jogos e é sintomático que do que mais se fale seja da possibilidade de este plano ser arruinado por uma equipa que apanhou 3-0 na terça-feira, o Real Madrid, pois então, que pelo menos um desses oito jogos será no Santiago Bernabéu, o estádio que eternizou o conceito de “medo cénico”. “Se há um sítio onde acontecem coisas loucas é ali, em nossa casa”, disse a caminho do autocarro, no Emirates, Jude Bellingham, médio inglês do Real Madrid que o realizador da partida focava com insistência depois de cada golo do Arsenal, para que ele simbolizasse aos olhos do público local a concessão dos campeões da Europa.
Hoje, o diário As, sempre um pouco mais descarado do que a Marca no apelo aos valores mais profundos do Madridismo, quase ignora os 4-0 que o FC Barcelona aplicou ontem ao Borussia Dortmund e a hipótese mais viável de ter um semi-finalista espanhol na Champions para fazer toda a primeira página com uma foto, épica por sinal, da celebração do quarto golo do Real Madrid nos 4-0 com que, em Dezembro de 1985, a equipa branca remontou, no Bernabéu, de um 1-5 contra o Borussia M’Gladbach, a caminho de uma vitória na Taça UEFA. “Sí se pudo, sí se puede”, titula a manchete, a apelar à crença. Há algo na imagem, que nos mostra Gallego de braços erguidos, eufórico mas indiferente ao monte de companheiros que pularam em cima do autor do golo, Santillana, que me remete para uma das fotos do século, aquela com que Joe Rosenthal eternizou a conquista de Iwo Jima pelas tropas americanas, na II Guerra Mundial. É o simbolismo da vitória, mais até do que a beleza plástica de ambas as imagens. A mensagem do lançamento da “Operação Remontada”, com a memória das mais estrondosas recuperações do Real Madrid europeu, desde os 5-1 ao Derby County, em 1975, é completada com palavras de Jose Antonio Camacho, antigo treinador do Benfica, que faz parte da lenda, porque jogou todas as partidas em que ela se inaugurou, nas décadas de 70 e 80. “O Arsenal vai passar muito mal no Bernabéu”, diz Camacho, como que a convocar as forças invisíveis que transportam o estádio para essa espécie de realidade alternativa.
Só que... a época do Real Madrid está feita em fanicos, com rumores cada vez mais insistentes de que, desta vez, Carlo Ancelotti não terá a capacidade para virar a coisa – o que alimenta a ideia de que pode mesmo acabar por optar pela seleção brasileira. Por mais estranhos que tenham sido os 3-0 de Londres – dois livres diretos de Declan Rice, por exemplo, quando o médio do Arsenal NUNCA tinha marcado um golo de livre direto na vida –, eles representam uma espécie de pináculo da imperfeição Madridista. Segundo jogo seguido sem marcar na Champions, o que não lhe acontecia desde 2009, terceira derrota da época por três ou mais golos, o que já não experimentava desde 2018/19, igualmente a última temporada em que foi derrotado onze vezes, o total de desaires que já leva neste exercício. E o mais dramático é que nem a possibilidade de não perder mais vez nenhuma até ao fim de maio pode garantir o final feliz com que os adeptos sonham. Uma das razões para tal é o que está a fazer o Barça – e tanto como os seus próprios maus resultados, aos madridistas doem as vitórias do rival, que vai na frente da Liga, com quem vão disputar a final da Taça, já ganhou a Supertaça e está com pé e meio na meia-final da Champions. O super-computador da Football Meets Data dá aos catalães 99 por cento de hipóteses de atingir as meias-finais, valor acima dos 94 por cento do Arsenal, dos 91 por cento do Paris Saint-Germain (que ganhou por 3-1 ao Aston Villa) e dos 83 por cento do Inter de Milão, de todas a única equipa que ganhou fora, batendo por 2-1 um Bayern de Munique cheio de lesionados. Mas depois favorece o sucesso do Arsenal sobre o PSG nas meias-finais.
E as razões pelas quais uma final entre o Barça e o PSG seria interessante e boa para o futebol vão para lá da pura dimensão do jogo, entrando pela política. Não que eu esteja lá muito à vontade com a irresponsabilidade total que tem sido a gestão do Barça por parte da equipa dirigente de Laporta, sempre pronto a dar o passo em frente quando encara o precipício, mas a forma como Hansi Flick pegou no grupo, deu expressão livre a Yamal, exponenciou o futebol direto e objetivo de Raphinha e conjugou tudo com a integração de mais gente da cantera, de Casadó a Cubarsí, passando por Pedri, Fermín, Baldé, Gavi ou até Peña e Ansu Fati, recupera aquilo que são os valores mais fundamentais do jogo. Este Barça é a conjugação de uma ideia de base, o futebol mais triangulado que se ensina em La Masía, com a voracidade de ataque ao espaço que está na base da ideia germanizada do treinador. É uma espécie de contradição em si – e eu gosto de contradições, porque me fazem evoluir. Depois, é verdade, também não estou muito à vontade com aquilo que simboliza o Paris Saint-Germain, exemplo acabado do que é um clube-estado, tão dominado ele é pelos fundos permanentemente injetados pela QSI do emir do Qatar. Mas há na inversão de marcha feita pelo clube após a chegada de Luís Enrique uma mensagem que o futebol não devia deixar de aproveitar. A renúncia às vedetas, às prima-donas, não deixando de ter jogadores habilidosos, como Kvaratskhelia, já estava à vista no discurso que o treinador fez a Mbappé, antes da eliminatória com o FC Barcelona, na época passada, instigando-o a defender “como un hijo de puta”.
“Quero que te vás daqui pela porta grande”, disse na altura Luís Enrique ao atacante, que era já o último representante do trio de super-vedetas que abrilhantava os cartazes usados para atrair turistas e neutrais aos jogos ou pelo menos ao merchandising do PSG – Messi, Neymar e Mbappé. Neymar já andava perdido na Arábia Saudita ou a recuperar da lesão grave que sofreu em casa, no Brasil, e Messi gozava uma reforma dourada e ativa em Miami. O PSG ainda passou aquela eliminatória, mas caiu depois, contra o Borussia Dortmund, de forma mais ou menos inexplicável, porque não marcou um golo nos 45 remates que fez em 180 minutos (xG total de 4,67). Mbappé seguiu para o Real Madrid e voltou atrás no tempo. Na terça-feira, contra o Arsenal, foi um dos únicos cinco jogadores em campo – e o único dos 22 que entraram de início – que não executou uma única ação defensiva. Até o As assinalou, na tal edição que consagrou à Operação Remontada, hoje, que os jogadores do Real Madrid correram menos 12,7 quilómetros do que os do Arsenal. Sim, o futebol não é atletismo. Evidente, mais do que correr muito, há que saber correr para os sítios certos. Mas é esta capacidade para pôr tudo em causa que me atrai na liderança de Luís Enrique, pois também ele parece sempre aberto à contradição – e sim, isso fê-lo evoluir, mesmo que essa abertura seja o que ainda hoje vem impedir que ele ocupe o lugar que merece entre os treinadores que passaram por Camp Nou.