A festa, a Champions e a 'realpolitik'
Após os excessos na festa do Sporting, o Governo decidiu abrir os estádios. A razão verdadeira é a final da Champions e a concessão feita à UEFA em nome do turismo e das relações internacionais.
Andava o país todo entretido a mostrar-se escandalizado com os excessos cometidos pela massa adepta do Sporting, tanta gente a festejar a conquista do título e muita dessa gente sem máscara, quando surgiu a notícia: o governo autorizou a presença de público na última jornada da Liga. Parece estranho? Pois se parece é porque é mesmo estranho. E por mais que se entendam os motivos, todos ligados à “realpolitik”, à importância da economia ou de fazermos boa figura lá fora, o que este facto sublinha é a hipocrisia por trás da condenação dos excessos de terça-feira. Ou isso ou mais uma manifestação de dupla personalidade acerca dos efeitos da pandemia no desporto.
Do que falo aqui é de três coisas diferentes. Uma coisa foram os excessos cometidos na festa leonina. Condenáveis, como é evidente. Mas de preferência depois de serem enquadrados na realidade mais vasta. E é quando o fazemos, englobando no raciocínio as outras duas variáveis, que completamos o círculo. Sendo que as outras variáveis são a forma se chegou a esses excessos, com uma planificação risível e que denota um desconhecimento quase total da natureza humana, e as motivações que levam à abertura das bancadas para a última jornada da Liga, obviamente ligadas à vontade de organizar em Portugal a final da Liga dos Campeões, dada a impossibilidade de Manchester City e Chelsea se defrontarem na Turquia, mais uma vez preterida.
Comecemos pelos excessos. Aquilo que faria sentido – e já há algum tempo – era que os jogos pudessem ter público a ocupar uma percentagem das bancadas. Sempre achei que a ausência de espectadores não era tão lesiva para o desporto como a paragem dos escalões de formação e que esta devia ser apenas a batalha secundária dos dirigentes desportivos, mas do que se tratava aqui era de fazer um pouco de antecipação ao que aí vinha. Os confrontos com a polícia que se verificaram em redor do estádio, durante o Sporting-Boavista, tiveram origem numa série de fatores, entre os quais a impossibilidade de haver gente nas bancadas. Até hoje, com gente nas bancadas, nunca houve público sem bilhete à volta do estádio nem a necessidade ou a vontade de ali instalar ecrãs gigantes para que os adeptos pudessem ver o jogo. Se estivessem nas bancadas, os adeptos estariam controlados, não haveria álcool a circular, e aqueles que não pudessem entrar iam ver o jogo em casa. Menos um problema, portanto.
Claro que o Governo não pode ser responsabilizado pelo mau comportamento de cada um – não lhe compete ser consciência coletiva e assumir a responsabilidade pela média aritmética dos desvios comportamentais dentro de uma multidão. Mas se a ideia ao proibir a entrada de adeptos nas bancadas era impedir que se concentrassem, quando se autorizou a instalação do ecrã gigante fora do estádio estava a pensar-se no quê? Que os adeptos iam ficar todos a dois metros de distância uns dos outros a bater palminhas? Se a ideia era evitar concentração de multidões, quando se colocaram grades no Marquês de Pombal, reduzindo o espaço disponível e enjaulando os que lá acorreram, instigando o instinto primal de derrubar grades, estava a pensar-se no quê? A responsabilidade do atropelo às normas de segurança e de saúde pública na madrugada de terça-feira é de quem as cometeu, individualmente, e de mais ninguém – não é do Governo, da polícia ou do Sporting… – mas as autoridades foram pouco previdentes e muito incompetentes na antecipação daquilo que o fim destes 19 anos de jejum de títulos podia significar para a gigantesca massa adepta leonina.
A permissividade revelada na preparação da festa do título até pode ser coerente com esta abertura dos estádios agora anunciada. Aliás, que fique bem claro: não sou contra a abertura dos estádios e até acho que já deviam estar abertos há mais tempo. A incoerência mostra-se é no choque com as reguadas que Governo, Direção Geral de Saúde, Presidente da República e polícia deram na palma da mão dos adeptos depois do que se passou na terça-feira. É algo do género: “vocês portaram-se tão mal que vamos dar-vos uma recompensa”. O timing é, no mínimo, estranho e discutível e só pode ser entendido com a necessidade de dar seguimento ao negócio que já estava em andamento com a UEFA, para trazer a final da Liga dos Campeões para o Dragão. Ora isso é uma coisa boa, pois o jogo mais importante do futebol europeu de clubes vai decorrer, pelo segundo ano consecutivo, em Portugal. Mas obriga a cedências. A UEFA quer público na final, para dar um sinal. O Governo e a FPF querem o jogo em Portugal – o primeiro faz relações públicas, dinamiza o setor do turismo e a imagem do país no estrangeiro, a segunda ganha pontos na relação com a UEFA, de que está cada vez mais próxima, à medida que se afasta da FIFA –, mas ambos entenderam rapidamente que não podiam abrir uma exceção aos estádios fechados que foram a norma de toda a temporada, pelo que decidiram abrir à pressa para a última ronda da Liga.
O que este caso de realpolitik nos mostra é que é sempre possível encontrar razões válidas para aligeirar o cumprimento de normas e princípios. E que se a norma dos estádios fechados vai ser contrariada para dinamizar a economia, o turismo e as relações internacionais, a do distanciamento social foi torpedeada para dar vazão ao fim de 19 anos de frustrações. Isso é bom? Claro que não. Mas é o que temos. São pessoas a serem pessoas.