A escassez e a abundância
Fatawu brilhou com um hat-trick na Youth League e isso serviu de arma de arremesso contra a decisão de o fazer jogar fora de posição na equipa principal do Sporting. Mas a questão é bem mais profunda.
O hat-trick de Fatawu pelos sub19 do Sporting, nos 5-1 ao Ajax, a valer a entrada dos leões nos quartos-de-final da UEFA Youth League, fez falar do ganês, por um lado com admiração e, por outro, como se se tratasse de um jovem injustamente ostracizado ou prejudicado sem razão por uma adaptação tática que não lhe convém mesmo nada. É que não foram só três golos. Dois deles foram golaços, daqueles que, a serem obtidos num palco mais mediático – e, já agora, contra uma oposição mais complicada – levariam à sua valorização repentina. Fatawu saiu da direita do ataque, fletiu para dentro de bola colada ao pé esquerdo, e meteu dali dois balázios na baliza holandesa, o primeiro em jeito, porque foi em arco ao poste mais distante, o segundo mais em força, num remate puxado e mais cruzado, também porque foi feito de uma posição mais lateral. O melhor lugar para Fatawu é este: atacante a partir da direita. Disso poucos duvidarão. E é aqui que haverá quem diga: “Rúben Amorim duvida, caso contrário não o faria jogar a ala esquerdo”, até com responsabilidades defensivas de lateral, no 3x4x3 da equipa principal. Não sei se Amorim concorda que a melhor posição para Fatawu é a direita do ataque. Sei que, na direita do ataque, o Sporting tem Edwards, em quem investiu 7,5 milhões de euros (por metade do passe) e de quem se espera que possa vir a ser uma das futuras grandes vendas do clube. A direita também conviria a Trincão, outro esquerdino, que por ali se destacou em Braga, a ponto de levar o FC Barcelona a suplantar a fasquia dos 30 milhões de euros para o levar e por quem o Sporting pagará mais dez milhões (igualmente por metade do passe) – mas que tem vindo a jogar a partir da esquerda. Até pode questionar-se a oportunidade do negócio de Trincão, mas Edwards já lá estava quando chegou Fatawu – tinha entrado em Janeiro de 2022 para precaver a saída de Sarabia, o canhoto que ali jogava na época passada. A contratação de Fatawu, 18 anos, por quem o Sporting deu pouco mais de um milhão de euros, foi um negócio de oportunidade. Chegado a Alvalade, sobravam-lhe dois caminhos: ou crescia na equipa B, como de certa forma tem vindo a fazer, ou entrava na rotação da equipa principal, cumprindo as diversas estações que a gestão da escassez leva o treinador a empreender, e que passarão também por alguma adaptação, se esse for o modo de lhe dar minutos ao mais alto nível. Pode achar-se que o plano é bom ou que é mau, mas se há coisa que ele não é é complicado de entender ou incoerente. O futebol do Sporting faz da escassez ponto fulcral, porque é da escassez que nascem as oportunidades para jogarem os mais jovens – foi da soma da escassez com a lesão de Bragança e com a imprevidência que nasceram tanto as dificuldades experimentadas a meio-campo depois da venda fora de horas de Matheus Nunes, como os maus resultados desta época (porque não havia para ali boas alternativas) e as oportunidades dadas a Essugo ou Mateus Fernandes, que não estavam ainda preparados para o upgrade. O que não se pode é criticar o plano que faz desta escassez a base de tudo e ao mesmo tempo discordar da abundância, que é o que acontece na posição em que de repente toda a gente acha que Fatawu tem de jogar.
Soares fora de água. Ricardo Soares fez um trabalho fantástico no Gil Vicente: levou a equipa do 11º lugar de 2021 ao quinto de 2022, conduzindo de caminho à valorização de jogadores como Samuel Lino (que, sozinho, seja de quem for o mérito da sua deteção, pagou uma época inteira de orçamento, na saída para o Atlético Madrid), Pedrinho, Lucas Cunha ou Leautey. A proeza valeu-lhe um contrato para liderar um dos clubes mais bem-sucedidos de África, o Al-Ahly, do Egito. E desenganem-se os que acham que ir para um grande do Egito é uma queda no currículo. Não é nada equiparável a trabalhar num grande europeu, mas nem financeira nem desportivamente é algo de se deitar fora, logo à partida porque o dinheiro é bom e se luta por ganhar provas continentais. Soares, porém, não se deu bem e voltou a casa. Assinou agora pelo Estoril, que ocupa um 15º lugar nada consentâneo com a qualidade que possui no plantel ou com o projeto de formação bem delineado que tem levado os canarinhos a serem uma espécie de vencedores perpétuos da Liga Revelação. A entrada na Amoreira, num clube que tem muito de tradicional e até de bairrista, mas que está implantado numa zona chique e bem, pode ser a prova dos nove para um treinador que já tem quase 20 anos de carreira e nunca fez outro trabalho com a visibilidade positiva deste que desenvolveu em Barcelos. Às vezes há casos assim, de treinadores que precisam do seu contexto, do seu aquário favorito para não se sentirem fora de água. Lembro-me sempre de Carlos Brito, que montou no Rio Ave várias equipas de autor, capazes de épocas extraordinárias, mas que sempre que saía dos Arcos parecia inadequado. O Estoril é um passo fundamental na carreira de Ricardo Soares e um dos pontos de maior curiosidade nesta ponta final de época em Portugal.
Palhinha, Palhona. O que se quer dum médio-defensivo? Que faça carrinhos, mais carrinhos e que desarme tudo o que mexe à sua frente? É possível. Que seja um primor com a bola nos pés, capaz de ações de construção refinadas e ágeis e que aprimore gestos técnicos como as receções, os passes ou a condução de cabeça levantada? Também é possível. Já escrevi várias vezes que não há uma receita definitiva e que o importante é que tudo bata certo e que, feita a soma das caraterísticas dos onze jogadores de uma equipa, todas as necessidades estejam satisfeitas. Palhinha não é aquele seis fino, que tabela e define caminhos, sempre de cabeça levantada, mas Marco Silva não se torna um treinador de bombo a tiracolo só porque não abdica dele no meio-campo do Fulham FC. Alguém há-de tocar violino, que da percussão trata Palhinha. Além de que não só ele não é um cepo – no Sporting ainda se sente falta dos seus passes de uma lateral à outra, a contornar blocos inclinados para o lado da bola e a encontrar espaço para a progressão do outro lado – como de vez em quando faz coisas que são de outro campeonato. O golo que marcou ao Leeds United, em jogo da FA Cup, anteontem, não valerá tanto como os 100 tackles que já fez na Premier League, mas lava os olhos a muitos – e a boca a outros.
Fatawu ainda é muito jovem. Tem de entrar aos poucos na primeira equipa, sob pena de uma ascensão precoce poder estragar-lhe a evolução. Trincão é que tarda a afirmar-se. Física e mentalmente parece frágil, mas começa a ser demasiado tempo para dar o clique e ser mais regular. Talento há, mas marcar grande golo de 10 em 10 jogos é pouco.