A democracia nunca é demais
Foi a democracia que legitimou Rui Costa como presidente do Benfica. E por mais que a "realpolitik" aconselhe o caciquismo, ele deve sempre ser combatido.
Rui Costa foi legitimado como presidente do Benfica, ao ser votado por mais de 84 por cento dos sócios, que acorreram às urnas numa votação recorde na história do clube. Caiu assim pela base o argumento de que estaria agarrado ao lugar herdado de Luís Filipe Vieira. Seja ele ou não o continuador do “vieirismo”, conforme foi acusado pela oposição, o antigo capitão ampliou a votação do antecessor, chutando para fora do estádio a questão da “cumplicidade ou conivência” com os atos que estão a ser investigados pelas autoridades. A partir de agora, só faz sentido voltar a associá-lo ao tema se vierem a ser-lhe imputadas responsabilidades concretas. O que ficámos a saber é que se Rui Costa é o “vieirismo”, é o “vieirismo” que os benfiquistas querem – esse é o grande mérito da democracia, essa mesma democracia de que o próprio Vieira escarneceu numa declaração inusitada, feita no momento em que foi à Luz votar.
Mandatado para continuar em funções por 33.754 dos 40.085 votantes, num total de 84,4% dos votos – seriam 84,2% se a antiguidade não ditasse diferentes pesos a cada sócio – Rui Costa fez o que lhe competia no imediato. Ontem, foi ver o futsal e o voleibol, como que a dizer que é mais do que presidente da SAD do futebol, e na madrugada anterior já tinha feito o inevitável discurso conciliador, tributando a Francisco Benitez os elogios que se impunham pela coragem de “servir o Benfica”, indo às urnas defender aquilo em que acreditava. O que a votação provou, no entanto, foi que Benitez era realmente um “downgrade” à candidatura anterior, personificada por João Noronha Lopes e por uma estrutura mais profissional e moderna. Apesar do apoio manifesto por muitas figuras da oposição a Vieira, incluindo o do próprio candidato que há um ano obtivera sensivelmente um terço dos votos, Benitez ficou-se por uns honrosos mas pouco significativos 12,2% dos votos expressos. E a verdade é que nunca saberemos se este esvaziamento dos resultados da oposição se deveu a um desinvestimento no candidato selecionado – por razões da sua vida pessoal, Noronha acabou por perder por falta de comparência –, a um reconhecimento da figura de Rui Costa enquanto benfiquista e da sua presumível competência para enfrentar as tempestades que aí vêm ou simplesmente ao afastamento daquele que muitos dos oposicionistas queriam ver fora do clube: Luís Filipe Vieira.
Vieira personificou, ainda assim, o único momento verdadeiramente disruptivo do longo dia eleitoral, quando foi à Luz votar, acompanhado por Vítor Santos, o “Bibi”, um dos seus parceiros dos primeiros tempos. Só ele saberá se a razão profunda para as declarações que proferiu era a de reclamar para si próprio os méritos do que fez ou isentar Rui Costa de algo que venha a provar-se ter sido ilegal nas ações das anteriores direções do clube e da SAD, mas a verdade é que Vieira escolheu mal o dia para dizer que “a democracia a mais neste clube faz mal” ou que “por não haver democracia é que o Benfica cresceu como cresceu”. O contexto não era o da teoria ou da ciência política, é preciso dizê-lo. O anterior presidente não proferiu estas declarações para defender o Estado Novo ou que deveríamos todos voltar ao tempo da “outra senhora”, quando o Benfica de Eusébio mandava no país e até na Europa, mas sim para dizer que, em contexto de direção, “ouvia toda a gente”, mas depois se comportava como um verdadeiro ditador e decidia ele próprio tudo. A primeira situação, além de totalmente desajustada num dia em que o Benfica estabeleceu um novo recorde de sócios votantes, seria inaceitável e obrigaria a que alguém lhe dissesse que não, que a democracia nunca é demais. Muito menos no Benfica, clube que tem uma história onde ela nunca foi desprezada, mesmo quando não era regra no país. Mas a segunda situação, mesmo não se sabendo se ele o disse por vaidade e orgulho na obra feita ou por uma tentativa torpe de solidariedade política com o sucessor, também tem de ser combatida.
É que durante muitos anos andámos todos a apontar como uma das razões para os sucessos do FC Porto, por exemplo, a longevidade de Pinto da Costa no cargo. Mais recentemente, houve também quem alegasse que o Benfica só voltou a ganhar de forma consolidada quando o próprio Vieira se ajeitou bem no cadeirão presidencial – o campeonato de 2005 terá sido um acidente de percurso, mas os títulos só começaram a aparecer com regularidade a partir de 2010, já no seu terceiro mandato. Mais: a constante rotação de líderes é frequentemente apontada em Alvalade como uma das razões profundas para a falta de títulos do Sporting nos últimos 40 anos. É que os leões tiveram sete presidentes durante os 18 anos de Vieira no Benfica e já vão em 13 desde que Pinto da Costa foi eleito pela primeira vez no FC Porto, em 1982. Por que é que isto acontece? Porque as pessoas precisam de conhecer os cargos e os clubes? Não creio. Acredito mais se me disserem que é porque as pessoas passam a dominar os bastidores dos órgãos decisores e de soberania, abrindo caminho à instituição daquilo a que em tempos se convencionou chamar “o sistema”.
Entendo as palavras de Luís Filipe Vieira como expressão de uma “realpolitik” que muitos defendem em privado para os seus próprios clubes mas depois não só têm vergonha de sustentar em público como condenam nos clubes rivais. Ao tentar ser esperto na chicana política, Vieira acabou por ser puro na expressão de ideais que, no entanto, seja qual for a sua razão mais profunda, têm de ser combatidos. Como já o foram, de resto, noutras áreas da nossa sociedade, levando a que fosse inviabilizada a eternização de qualquer cargo político – e as autarquias, nesse aspeto, foram um dos últimos bastiões desse caciquismo. É por isso que no primeiro mandato de Rui Costa, tanto como ver se o Benfica ganha ou perde nos campos, me interessa perceber se vão avante a revisão de estatutos e a limitação de mandatos. Seria um passo em frente no desporto português e uma declaração de intenções sonora. Porque não, a democracia nunca é demais.