A decisão que Vieira não conseguirá explicar
Ao recuperar Jesus, Vieira está a corresponder ao grito do clube à empresa cotada em bolsa. Mas é também algo que o presidente não conseguirá explicar e que lhe causará dificuldades eleitorais.
A contratação de Jorge Jesus é a resposta do Benfica-clube de futebol à Benfica-empresa cotada em bolsa. É uma vitória do treinador, que regressa a um clube de onde foi “corrido” e cujos gurus passaram semanas, meses, anos, a vilipendiá-lo com a mesma eloquência com que agora o elogiam e defendem – e conseguem fazê-lo sem rir nem chorar, o que é mais admirável. Há-de ter sido uma decisão interessante de acompanhar nos bastidores, por tudo aquilo que ela implica no plano estratégico. Mas é uma notícia particularmente interessante se tentarmos vê-la pelos olhos de Luís Filipe Vieira.
Já expliquei aqui o que esteve atrás da decisão estratégica de cortar com Jesus. Uma avaliação excessivamente otimista dos valores que havia na academia do Seixal e do que eles poderiam fazer pelo clube no imediato, a rejeição das raízes populares e de algumas atitudes menos corretas do treinador da Reboleira e, sobretudo, a crença de que a máquina empresarial que o Benfica “dos seis milhões” seria capaz de montar com o auxílio da Gestifute no mercado internacional seria mais do que suficiente para assegurar a hegemonia do futebol português por via do capital, sem ter de depender de um treinador. Menos ainda de um treinador que tem a mania que sabe de bola e que escolhe os jogadores que quer… E não deviam ser todos assim? Para o Benfica-empresa cotada em bolsa, o melhor treinador é um treinador low-profile, um treinador que seja competente – como o são indiscutivelmente Vitória ou Lage – mas que aceite o que a empresa lhe dá, cumpra os objetivos que a empresa lhe define – e um deles era o de dar cada vez mais espaço no onze aos miúdos formados em casa, muito mais atraentes como negócio se vistos na perspetiva dos relatórios e contas –, e de preferência ainda vá todos os dias dar graças a São Cosme Damião por o deixarem continuar à frente do projeto.
Sucede que isso gera uma dinâmica financeira muito interessante, um rolo compressor difícil de parar – o Benfica teve esta época o poder financeiro para contratar dois jogadores de 20 milhões e um de 16 milhões – mas encerra em si contradições que a contratação de Weigl mostrou a quem as quis ver. O alemão é um excelente futebolista, mas não era o futebolista de que o Benfica mais precisava, porque veio para ocupar uma posição que estava bem preenchida. Do ponto de vista da estratégia do Benfica-empresa cotada em bolsa, o negócio fazia todo o sentido: era “brand-awareness” pura e simples. Contratar, por 20 milhões, um jovem internacional alemão ao Borussia Dortmund era uma demonstração de pujança que incrementava a marca Benfica nos mercados internacionais e fazia falar dela um pouco por todo o lado. Mas do ponto de vista do Benfica-clube de futebol já era bastante mais discutível, porque havia Florentino, Fejsa, Samaris, Gabriel, Taarabt e até eventualmente Chiquinho e Pizzi para as duas posições que Weigl podia ocupar e aquilo que faltava era mais um defesa-central e possivelmente mais um lateral esquerdo ou um guarda-redes fiáveis no caso de Grimaldo e Vlachodimos se magoarem.
A diferença entre o Benfica-empresa cotada em bolsa e o Benfica-clube de futebol está, assim, sobretudo, na tomada de decisão. Quem toma a decisão? A administração, que olha para as racionais financeiras e de gestão, ou o treinador, que olha para as variáveis de composição do plantel de acordo com uma ideia de jogo que tem de ser ele a definir? Com a contratação de Jesus, o Benfica volta ao paradigma da empresa liderada pelo treinador – e foi assim que deixou de ser um clube perdedor (dois campeonatos ganhos de 1992 a 2009) e passou a ser um clube ganhador (três campeonatos e duas finais europeias de 2009 a 2015). Agora o que é interessante é ouvir o que tem a dizer Luís Filipe Vieira sobre esta reinversão estratégica. Eu já disse várias vezes no Futebol de Verdade que no momento em que Vieira resolvesse explicar o que mudou na sua cabeça para voltar a Jesus ia comprar um balde de pipocas para me entreter a ver o espetáculo, pois não creio que o presidente do Benfica esteja disponível para entrar na explicação que acabei de dar acima. E muito menos creio que, com eleições à porta e uma oposição particularmente assanhada na sequência da perda do segundo de três campeonatos, ele possa vir dar o corpo às balas e dizer pura e simplesmente que se enganou ao dispensar o treinador que mudou o Benfica e que se enganou também nas declarações posteriores, quando disse que com Jesus era impossível construir um projeto ou que ele não era capaz de dar ao Benfica dimensão europeia.
A questão é que a recuperação de Jesus é, na essência, antieleitoralista. É antieleitoral porque amplifica uma inversão de marcha que não diz muito da sua coerência enquanto gestor. É antieleitoral porque implica trazer de volta um treinador que não é nada consensual entre os adeptos – voltará a conversa da parca aposta na formação, dos miúdos que “têm de nascer dez vezes”, da falta de respeito a Shéu no banco em Londres, do apoucamento de Rui Vitória e do que Jesus fez depois em defesa dos interesses do Sporting… E é antieleitoral porque até às eleições Jesus não vai ter tempo de ganhar grande coisa. Pode entrar na Liga dos Campeões? Certo. Mas o Benfica tem estado lá sem ele. Pode ganhar a Supertaça? Correto. Mas o Benfica ganhou-a há um ano – e goleou o Sporting – sem ele. Pode liderar a Liga? Pois pode. Mas o Benfica também a liderou durante meses sem ele.
Estou convencido de que, ao recuperar Jesus, Vieira está a fazer uma coisa certa. Mas está ao mesmo tempo a tomar uma medida que não tem condições de explicar e que lhe causará dificuldade no processo eleitoral. Ou ele sabe alguma coisa que nós não sabemos ou vêm aí tempos animados.