A cultura da exigência
Será Rúben Amorim um "banana"? Sérgio Conceição é um "capataz"? E Jorge Jesus é um "pedinchão"? Há que dar algum crédito aos treinadores dos três grandes.
Em dois dias, Rúben Amorim, Sérgio Conceição e Jorge Jesus deixaram-nos três formas bem diferentes de abordar os constrangimentos vindos do campo. No sábado de manhã, a antever o jogo com o Portimonense, o treinador do Sporting desdramatizou a pesada derrota que a sua equipa sofreu face ao LASK e que a afastara da Liga Europa, dois dias antes. Mais à noite, o responsável pelo FC Porto apontou bem para dentro do balneário para explicar a forma como a sua equipa foi batida no Dragão pelo Marítimo, em jogo da Liga. E, já ontem, foi a ver de o responsável pelo futebol apresentado pelo Benfica lembrar que para “arrasar”, como prometera, precisa sempre de mais jogadores. Para os que gostam de ver o mundo sempre a preto e branco, o veredicto é simples: Amorim é um banana, Conceição um capataz e Jesus um pedinchão. Mas o mundo nunca é assim tão simples e não há um manual de liderança que seja 100 por cento eficaz em todas as circunstâncias.
O Sporting de hoje vive marcado pela ideia cultura de exigência – é muito por aí que se explica a fratura entre adeptos do clube, entre os que acham que a forma correta de liderar é a usada por Bruno de Carvalho, que arrasou os jogadores no Facebook depois de uma derrota com o Atlético Madrid, e os que aceitam que Hugo Viana e Rúben Amorim venham desculpabilizar o afastamento europeu pelo bem mais modesto LASK. Mas terá Amorim sido um banana por dizer que não podia pedir mais aos jogadores, “porque eles deram tudo”? É evidente que não fica bem aos responsáveis normalizar um 1-4 sofrido em casa aos pés do quarto colocado da Liga austríaca, mas não tenho essa ideia do treinador do Sporting – e na verdade tem tudo a ver com os objetivos que ele terá querido atingir. Este Sporting ainda está a gatinhar. Tem lá muitos miúdos – ainda ontem utilizou nove sub23 nos 16 que entraram em campo – e, neste momento, mais do que convencer os adeptos, o treinador precisa de convencê-los a eles a acreditarem no processo de construção coletiva. Foi nesse sentido que entendi as palavras do treinador depois da embaraçosa derrota caseira contra os austríacos – e a resposta acabou por ser a pretendida, pois apesar de não ter sido capaz de jogar por mais de 25 minutos ao mesmo nível, talvez devido a condicionantes de ordem física, o Sporting foi a Portimão ganhar por 2-0 e manter o registo 100 por cento vitorioso na Liga.
No FC Porto, a cultura de exigência faz parte do DNA do clube. São os próprios portistas que gostam de se identificar com uma imagem de mais transpiração do que inspiração, em que o trabalho está acima de todos os outros valores. Mesmo assim, percebeu-se no dia seguinte à derrota caseira com o Marítimo que o discurso de Sérgio Conceição tinha alvos específicos. A nada ligeira inflexão de discurso do treinador da flash-interview, feita logo a quente, para a conferência de imprensa, dada depois de poder refletir um pouco, pode até vir acentuar a ideia de capataz explosivo que muitos têm do treinador, mas a verdade é que nas palavras de Conceição fica sempre um aviso para futuras situações. Quando, na véspera de o FC Porto deixar sair Alex Telles, Danilo e Zé Luís, o treinador acaba um jogo perdido, com eles em campo, a dizer que “quem não for competitivo sabe onde fica a porta” e, depois, mais tranquilo, vem assumir que a culpa é dele, “por ter feito as escolhas” que fez, está a dizer ao balneário que não volta a confiar em jogadores que estejam com um pé dentro e outro fora do clube. Não é uma intervenção tão estratégica como a de Amorim – que terá falado diretamente para obter determinada resposta no jogo de Portimão – mas não deixa de ser uma ideia programática e reveladora daquilo que o treinador quer dos seus jogadores: empenho total e cabeça 100 por cento concentrada nos objetivos do coletivo.
Quanto a Jorge Jesus, a dialética é bem diferente. Quem preferir olhar para o treinador do Benfica e ver o fanfarrão que promete que a equipa com ele “vai jogar o triplo”, ou que vai “arrasar”, mas só se a administração lhe der todos os jogadores que ele pretende – e são muitos – está a esquecer um fator importantíssimo. É que foi para isso que o contrataram. Se Jesus voltou ao Benfica foi porque a administração se arrependeu do processo que iniciara com a sua saída, em 2015, um processo de descapitalização do plantel liderado por técnicos que até podiam exigir dos jogadores mas aceitavam sempre o que os dirigentes lhe davam. E se já todos sabemos que a exigência de Jesus aos jogadores é bíblica e chega por vezes a ser exagerada na forma de expressão, estamos agora a assistir a um novo capítulo em Portugal na história da relação entre um treinador e a administração, um capítulo em que as exigências do técnico são tornadas públicas pelo próprio como fator de pressão. Ainda ontem, na sequência da sofrida vitória frente ao Farense, Jesus veio dizer que o jogo demonstrava na perfeição porque é que ele quer “mais um central”. A frase também pode ser vista como um sacudir de água do capote, uma recusa mascarada de assumir plena responsabilidade pelo que vem a seguir se não lhe derem o que ele quer, mas o que ela é mesmo é uma forma de pressão para que se faça um negócio (o de Rúben Semedo ou, em alternativa, o de Lucas Veríssimo) que o treinador entende como fundamental para os objetivos que lhe foram propostos.
A cultura de exigência faz parte das nossas vidas, mas querer que ela seja aplicada de forma cega raramente é boa ideia. Porque a verdade é que cada situação exige uma determinada ação. E nestas coisas gosto sempre de partir do princípio que se um treinador chegou líder de um dos três maiores clubes de Portugal é porque não é totalmente desprovido de inteligência estratégica.