A clareza das transferências
A Casa das Transferências da FIFA deve abrir no final desta época, com o intuito de regular e centralizar todo o dinheiro movimentado em transações entre clubes. Já vem tarde.
Não sei se, conforme parece acreditar o Ministério Público, Pinto da Costa é o estratega por trás de um intrincado esquema de desvio de fundos do FC Porto através de comissões de transferências de jogadores ou se, como o próprio se queixou no emotivo discurso proferido na cerimónia de entrega dos Dragões de Ouro, tudo não passa de uma maquinação feita de “calúnias e mentiras”. O que sei de ciência certa é que estas coisas acontecem e que se não for ali é noutro lado. E isso é razão mais do que suficiente para que o atraso na entrada em funcionamento da “FIFA Clearing House”, uma espécie de “Casa das Transferências”, como a que já existe em Itália para negócios internos, seja um problema que o futebol precisa de atacar com a máxima urgência.
Nestas coisas nunca se deve ter razão antes de tempo – nem negar depois que se a teve, como já vi gente entretanto arregimentada fazer. Nunca fui um fanático do segredo de justiça, pelo menos no que toca a jornalistas, pois acho que se temos a certeza absoluta de factos devemos sempre publicá-los. A questão nos processos que estão a ser instruídos – um estado cujo caráter as pessoas tendem a esquecer, quase sempre por paixão quando se trata de futebol – é que não podemos ter a certeza de nada, a não ser que o procurador acha que pode acusar. Depois, nem sempre os investigados são acusados, nem sempre os acusados são culpados e, mesmo que o sejam, nem sempre assim são declarados em tribunal, seja por falta de provas ou por meras e irritantes tecnicalidades. O despacho do procurador Rosário Teixeira, ontem divulgado por Rui Pinto, parece complicar as coisas para a defesa da tese da cabala, sustentada por Pinto da Costa, mas não é – nunca é – o documento final.
O que não quer dizer que Pinto da Costa seja, como reclama, inocente e alvo de perseguição. Ou que este crime de desvio de fundos através das comissões de transferências de jogadores não seja, hoje em dia, tão corrente que se tornou uma das principais ameaças ao negócio do futebol, conforme foi identificado no “White Paper: Transfer System Reform”, publicado pela FIFA em 2018. Com todos os problemas que acarreta, da proteção de dados a um crescimento avassalador da burocracia, que pode vir a atrasar pagamentos, passando ainda pela questão jurídica e de legislação internacional, que tem sido preciso trabalhar e articular, a instituição da FIFA Clearing House, decidida em Outubro de 2018, foi pensada sobretudo para assegurar que os clubes cumprem uns com os outros na liquidação dos direitos de formação em transferências menores – que são esses mini-negócios que muitas vezes ficam esquecidos, confiando os devedores na incapacidade da estrutura legal para os processar.
A medida tem, contudo, outra implicação importante. Ao exigir que todo o dinheiro envolvido em transferências passe por uma estrutura centralizada e seja declarado, impondo um teto percentual nas comissões, a FIFA está a tentar fechar a porta a negócios fraudulentos até aqui facilitados pelas transferências feitas através de intermediação menos escrupulosas. A partir da entrada em funcionamento da “Clearing House”, é lá que todos os contratos terão de ser registados e é por lá que todos os clubes e agentes têm de fazer passar o dinheiro que pagam – e o que recebem também. Resolve o problema? Não, mas é um passo fulcral na reforma de um sistema que já não é mexido há 20 anos, desde a última alteração significativa feita no Regulamento do Estatuto dos Jogadores.
Não pensem, contudo, que o negócio do futebol pode passar a ser totalmente objetivo e regulado – até porque se assim fosse não seria negócio. Não acreditem que com a “Clearing House” vão deixar de protestar e polemizar sempre que um clube que não o vosso transfere um jogador por valores que vocês consideram irrealistas, porque não caberá nunca à FIFA estipular o preço de uma transferência (se o fizesse estaria a anular o poder do bom scouting, por exemplo). E já daí se percebe que haverá sempre margem para aparecerem coisas menos claras quando um jogador sai daqui para ali. Ou que elas possam passar das transferências para as renovações de contrato. O que a “Clearing House” poderá vir a impedir é, por exemplo, a cobrança de comissões excessivas pelos intermediários das transferências, com o intuito de depois fazerem circular esse dinheiro, envolvendo empresas detidas por quem vende ou compra.
Principal consequência desta medida? Lá vão os criminosos ter de encontrar outras formas de sacar o dinheiro do futebol. Porque se há coisa evidente para quem anda nisto há muito tempo é que eles estão sempre um passo à frente: há o crime, há a perceção do crime, há o trabalho legal para impedir e processar esse crime, mas quando isso se consegue já o crime mudou, dando início a mais uma volta no carrossel.