A armadilha do Gil Vicente
Joga muito, o Gil Vicente de Ricardo Soares, que no final da época vai preparar a estreia europeia. E tem de fazê-lo com atenção à armadilha do sucesso, que surge sempre nestas ocasiões.
O Sporting e o FC Porto deixaram, cada um, dois pontos nos seus jogos da 24ª jornada da Liga, o que, como se calcula, manteve tudo na mesma no topo, ainda que com menos uma partida pela frente – o que é uma boa notícia para os dragões. Ainda assim, mais do que entender o que os dois favoritos fizeram mal para não ganharem jogos que deviam ter ganho – basta ver o xG desses jogos –, há que perceber o que fizeram bem os seus opositores, em particular o Gil Vicente, que jogou desde o segundo minuto no Dragão com um homem a menos, por expulsão de Vítor Carvalho. E aquilo que fez bem o Gil Vicente é o que tem feito ao longo da época e o que já fizera, por exemplo, na Luz, de onde saiu com a vitória na partida com o Benfica. Joga muito esta equipa de Ricardo Soares. Joga tanto, que tem de começar já a preparar-se para a armadilha que surge sempre nestas ocasiões: a armadilha do sucesso.
Claro que muito do sucesso deste Gil Vicente tem a ver com a escolha feliz de jogadores que lhe compõem o plantel. Mas essa felicidade não estava à vista de todos. Fran Navarro, que já é o melhor marcador de uma só época do clube de Barcelos na I Divisão, com 13 golos, nunca foi experimentado pelo Valência CF a não ser na equipa B e não tinha dado certo na passagem pelo KSC Lokeren, da Bélgica. Pedrinho, o mago que faz aparecer triângulos a meio-campo de forma fácil e inusitada, esteve numa descida e numa subida do FC Paços de Ferreira, antes de se exilar na Letónia, mas não deixa de ter passado mais tempo na II Liga do que na primeira, enquanto jogou em Portugal. O japonês Fujimoto é um miúdo também mais habituado ao segundo do que ao primeiro escalão da J-League, no Tokyo Verdy. Leautey nunca passou da segunda divisão em França. Zé Carlos chegou a Barcelos dispensado pelo SC Braga. Samuel Lino vai para a segunda época seguida com os golos nos dois dígitos, mas impõe-se sobretudo como alternativa de saída por fora, capaz de carrilar jogo para longe da zona de perigo com a frequência necessária para deixar respirar uma defesa a que Talocha e Rúben Fernandes dão a necessária experiência.
Há muito trabalho de treinador no futebol do Gil Vicente. O jogo apoiado que, mesmo com dez, continuou a sair, terá uma boa parte de origem nas caraterísticas de jogadores como o excelente médio Pedrinho – cuja escola é a de jogar sempre em apoio, de dar sempre uma linha de passe ao portador – mas também tem muito trabalho. E isso viu-se, por exemplo, nas diferenças entre os jogos que esta equipa fez com os grandes na primeira volta e os que está a fazer agora na segunda. Mais resistência na primeira leva de partidas, concluída com três derrotas – ainda que duas delas consumadas apenas perto do fim – e mais proatividade nesta segunda ronda, tentando impor argumentos ao jogo. Prova de que a persistência paga. Que o facto de Ricardo Soares praticamente não ter alterado o seu onze-base desde o início desta época – oito jogadores foram titulares em pelo menos 22 das 24 jornadas da Liga, ficando boa parte das ausências a dever-se a suspensões por vermelho ou quinto amarelo –, somado ao trabalho que tem vindo a desenvolver ao longo das semanas tem reflexo na qualidade de jogo que a equipa depois demonstra ao fim-de-semana.
Se tivermos em conta que o Gil Vicente foi enxertado entre os grandes há dois anos e meio, por sentença judicial, mais relevo ganha o trabalho que foi feito desde essa altura, a começar pelo que ali fez Vítor Oliveira, o treinador que foi capaz de transformar a manta de retalhos que era esse primeiro plantel – jogadores vindos de múltiplas origens, para dar um salto de duas divisões – numa equipa que acabou a Liga num inesperado 10º lugar. Rúben Fernandes, Vítor Carvalho e Samuel Lino, um defesa, um médio e o avançado, são os elos de ligação deste Gil Vicente com o que regressou à Liga principal. No 11º lugar da época passada, conseguido por Rui Almeida – primeiro – e Ricardo Soares – a fechar a época – já estiveram Talocha, Pedrinho, Fujimoto e Leautey. Este ano, com mais alguns retoques, vai chegar a qualificação europeia. No próximo, será altura para enfrentar um desafio muito diferente: a resistência ao sucesso.
A maior parte das equipas portuguesas está rotinada na reação aos insucessos – despedem o treinador, promovem mais uma volta na roda da fortuna que leva sempre os mesmos a trocar de cadeiras e mandam vir um camião de reforços através do agente conjunturalmente mais bem colocado. O problema, aqui, é quando se alcança o sucesso. O treinador começa a ser falado para outros lados – e Ricardo Soares já foi associado a clubes brasileiros. Os melhores jogadores ganham mercado e vai ser necessário substituí-los – Samuel Lino já assinou pelo Atlético Madrid. E, muito mais perigoso, a clientela gera na estrutura dirigente a noção de que agora, com a presença europeia, com o dinheiro que ela pode prometer, vai ser preciso – e possível – mudar muita coisa, trazer muito mais reforços, dessa forma abalando aquele que até aqui foi o mais forte dos alicerces do sucesso: a estabilidade. Essa é a armadilha que espera pelo Gil Vicente nos próximos meses.
No fim-de-semana pode ter-lhe escapado:
(Mas ainda pode ler, ou ver, clicando na foto)
António tem de ter cuidado com o texto :) senão está a dar lhe boa imprensa :)
Joga muito, não haverá melhor forma de começar um texto a falar do Gil Vicente desta época. Dá prazer ver jogar esta equipa, a forma como com 10 saia a jogar e criava espaços é espectacular, de fazer ver aos grandes. Parabéns a estrutura e ao treinador, de facto o problema vai ser manter os melhores jogadores porque vão aparecer de certeza propostas irrecusaveis e depois torna-se a refazer uma equipa e voltasse a estaca zero. É pena mas se o Gil conseguir tapar bem as saídas certas de Samuel Lino e de Fran Navarro (não acredito que fique) pode manter a tal estabilidade necessária. Esta equipa do Gil jogava de caras com muitas equipas da Conference League deste ano.
Foi pena a expulsão, podia ter sido um jogo bem mais empolgante. Cumprimentos