A anatomia de duas chicotadas
FC Famalicão e Marítimo são os dois últimos da Liga e mudaram de treinador em busca da salvação. Mas temo que não tenham entendido o que está na base das crises. Que são bem diferentes.
Há coisas que eu compreendo nas chicotadas psicológicas e que percebo que não possam ser explicadas. E depois há coisas que, por mais que mas expliquem, tenho sempre dificuldades em entender. As mais recentes trocas de treinadores na Liga portuguesa, nos dois últimos da tabela classificativa – FC Famalicão e Marítimo – podem ser explicadas com a necessidade de abanar os jogadores do ponto de vista mental, mas tenho o azar de essa ser a parte que me custa a entrar – e, já agora, de sucessivos estudos terem já demonstrado que esse efeito da chicotada se perde quase sempre. E, no meio disto tudo, só fico abismado a ver os zigues e os zagues nas escolhas de quem manda e que, em última análise, são sempre muito mais diretamente responsabilizáveis pelos maus resultados do que qualquer treinador que tenha o azar de por lá passar.
Os casos de FC Famalicão e Marítimo são bem diferentes, a começar no que cada clube tem sido na Liga no passado recente. Os minhotos regressaram ao escalão principal apenas no ano passado, enquanto que os madeirenses lá estão há quatro décadas. Estes até já tiveram um período áureo, com passagem pelas competições da UEFA, mas ultimamente têm andado mais discretos, ao passo que aqueles, logo no ano de estreia, ameaçaram chegar à Europa, através da criação muito meritória de uma equipa surpreendente. Portanto, para que conste, o que está aqui em causa não é se os dirigentes são bons ou maus ou sequer se servem bons ou maus propósitos. São bons e maus, servem bons e maus propósitos e, por vezes, tomam más decisões, desprovidas de qualquer racional e que estão mesmo a pedir aquilo que está a passar-se.
É mais simples de analisar o caso do FC Famalicão. A SAD foi comprada por Idan Ofer, um bilionário israelita que é o terceiro maior acionista do Atlético Madrid e certamente quis fazer dela uma espécie de placa giratória que lhe facilite os negócios. O clube começou por ganhar bastante com isso, é bom que se diga. Provavelmente, sem a aquisição da maioria pelo grupo a que preside Ofer, o Quantum Pacific, em 2018, nunca os minhotos teriam regressado à Liga principal. Quase de certeza que sem a tomada de posição ainda mais forte (85%), em 2019, não teria sido possível construir a super-equipa que na época passada andou tão perto de uma qualificação europeia logo em ano de estreia: muitos dos jogadores que fizeram aquele FC Famalicão eram excedentários em clubes ligados aos negócios e aos parceiros de Ofer – e de Jorge Mendes –, como o Valência, o Atlético Madrid ou o Wolverhampton, mas excelentes aquisições para a Liga portuguesa.
No final da época, a SAD famalicense fez o que lhe está no plano estratégico: vendeu (ou viu os jogadores regressar aos clubes de origem, que lhos tinham emprestado a troco do serviço que era pô-los em ação). Dos 18 jogadores mais usados pelo FC Famalicão na época passada, 14 foram embora no defeso. Sobraram quatro: os defesas Riccieli e Patrick William, o médio Gustavo Assunção e o avançado Anderson Oliveira. Quem se sujeita a este tipo de política, das duas uma: ou acredita em milagres ou precisa de uma identidade muito forte em termos de condução técnica. Isso parecia ser assegurado por João Pedro Sousa, o treinador que tão elogiado foi durante a época passada. Mas a nova fornada de talentos, aparentemente, não é tão forte como a anterior e quem acabou por pagar as favas foi mesmo o treinador – o que até seria legítimo se estivéssemos a falar de um clube rico e capaz de escolher os jogadores que quer no mercado. Mas sabemos bem que não é isso que acontece: o FC Famalicão terá sempre os jogadores que os clubes parceiros do seu dono precisarem que ali joguem e ter três treinadores numa época (a João Pedro Sousa sucederam-se Jorge Silas e, agora, Ivo Vieira) não ajuda.
O caso do Marítimo é muito mais complexo, porque ali até não há mais instabilidade que a normal no plantel – ainda que as subidas e descidas à equipa B careçam, no meu ponto de vista, de uma linha condutora mais forte – mas se muda o condutor com uma regularidade que até parece estudada. Depois de ter perdido Pedro Martins, em 2014, o presidente Carlos Pereira entrou numa fúria anti-treinadores que o levou a contratar e demitir onze treinadores em sete épocas – o espanhol Júlio Velásquez é o 12º a entrar. De todos, só Daniel Ramos – hoje a fazer excelente trabalho no Santa Clara – por lá ficou um campeonato inteiro, por isso mesmo conquistando as melhores classificações desde a saída do atual campeão grego: um sexto lugar em 2017, depois de ter substituído o brasileiro Paulo César Gusmão a meio do caminho, e um sétimo em 2018. Estas foram, aliás, as únicas duas vezes que o Marítimo ficou na metade superior da tabela desde que Pedro Martins trocou o Funchal por Vila do Conde, a caminho de Guimarães e do Olympiakos.
Mas o mais extraordinário nem é esta mentalidade de anos 80, que leva a assumir o treinador como personagem descartável. O que mais espanta é a forma como os madeirenses entregam plantéis formados por um treinador de um determinado perfil a outros com um perfil totalmente diferente. O grupo para esta época foi formado por Lito Vidigal, um dos máximos expoentes da escola utilitária no futebol português – solidez defensiva acima de tudo – mas, depois de um ainda assim longo interinato de Milton Mendes, vai ser entregue a Velásquez, que curiosamente até já tinha sucedido a Lito em Setúbal na época passada, mas que pensa o futebol de forma radicalmente diferente, mais atrativa e ofensiva. Já na época passada os madeirenses tinham começado com o mais defensivo e solidário Manta Santos, para depois darem a equipa ao mais vistoso José Gomes. E há dois anos tinham feito ao contrário: esteve o promissor Cláudio Braga no início, mas quando as coisas começaram a complicar-se coube ao mais defensivo Petit salvar o clube.
No Marítimo, o problema vai muito para lá da mudança de treinador. É a mudança de todo o contexto que está em causa. É querer ganhar uma corrida com Lewis Hamilton mandando-o, a meio do percurso, trocar um Fórmula 1 por uma bicicleta topo de gama. Ou querer vencer com Tadej Pogacar exigindo-lhe que em vez de pedalar passe a conduzir a altíssima rotação num monolugar motorizado. E isso só dificulta.