A ameaça de morte ao desporto em Portugal
Imaginem que Ronaldo tinha dez anos – a idade do filho mais velho – e estava nas camadas jovens do Nacional, impedido de voltar aos treinos há seis meses e sem perspetiva de o fazer no futuro.
Resolvida a questão do campeão, há um silêncio ensurdecedor em resposta a uma questão fundamental que continua a incomodar-me: como vai ser o futebol não profissional e de formação em 2020/21? Ou, se quiserem ver a coisa numa perspetiva mais alargada – que cá em casa vejo, na condição de pai de um jogador de rugby prestes a completar 16 anos e a entrar na fase decisiva da sua formação como atleta –, como vai ser o desporto em geral em Portugal e no Mundo a seguir ao Verão? Aparentemente, ninguém sabe e até o plenário das federações, reunido esta semana, não terá ido além de uma pressão tão compreensível como inútil a um Governo que devia ter política – e aparentemente ainda não tem – mas que mesmo que a tenha não faz milagres.
Para já, tudo o que se fez foi retomar as Ligas que mais dinheiro movem, num racional que foi meramente económico. Nada a opor. Não sou daqueles que vocifera contra o desporto-indústria, porque na sociedade que vivemos hoje tudo o que é fenómeno de massas acaba por ser industrializável e os desportistas não têm menos direitos a ser profissionais do que os atores ou os produtores de roupa ou refrigerantes. Num primeiro momento, de resposta à crise, julgo que, regra-geral, as decisões tomadas foram as mais adequadas – mesmo que me pareça que, falando do futebol em Portugal, devia ter havido mais consideração pela condição de profissional da II Liga, que também ela devia ter sido reatada. O racional é simples de entender e justificar: a pandemia e as suas necessidades de confinamento desaconselhavam a prática de desportos coletivos, por risco de criação de cadeias de contaminação, pelo que os únicos que puderam reatar foram aqueles cujo nível de receita chegavam para sustentar protocolos de segurança dispendiosos, com necessidade de testes permanentes a atletas, de modo a que não se coloquem uns aos outros em risco.
Foi por isso que, em Portugal, todo o desporto parou à exceção do futebol profissional – a única modalidade cujas receitas televisivas chegavam e sobravam para pagar os protocolos. A época de 2019/20 vai, assim, chegar ao fim com um campeão e, correndo tudo bem nas duas semanas que faltam, um vencedor da Taça de Portugal. Mas, terão as coisas mudado assim tanto em termos de Covid-19 para que a época de 2020/21 possa começar sem sobressaltos? Para já, tudo o que se sabe é que a Liga quer recomeçar o segundo escalão na terceira semana de Agosto. Corrigirá assim parcialmente uma injustiça que cometeu quando foi decidido não terminar a prova, condenando clubes e jogadores – que são profissionais – a uma inatividade de seis meses. Mas e o Campeonato de Portugal? E os distritais? E, perdoem-me os amadores por os secundarizar, mas, mais importante que tudo isso, o futebol de formação, de onde vai sair a esmagadora maioria dos craques de amanhã? Sem receita e sem a capacidade para pagar testes de forma intensiva, pode haver desporto amador e desporto de formação em Portugal?
Na maior parte das modalidades, estas duas coisas estão muito intimamente ligadas, pois são as mensalidades pagas pelos pais pela formação desportiva dos seus filhos que permitem aos clubes a receita para depois fazer face à despesa que significa manter equipas seniores em funcionamento. Para já, nas modalidades que conseguiram fintar a paragem e já retomaram algum tipo de atividade, tudo o que se tem visto são treinos individuais, mantendo o devido distanciamento social – bases nas quais fica impossibilitada qualquer atividade coletiva, bem como a própria ideia de competição. E a continuarem assim as coisas, há duas batalhas às quais será preciso acorrer com brevidade para que a guerra não fique desde já perdida. Uma resolve-se com financiamento e é, por isso, a menos importante – como evitar que estes clubes soçobrem se tiverem de manter a inatividade? A outra, porém, é a fundamental: como manter os milhares de jovens que praticam desporto federado ligados às suas modalidades e prevenir que eles fujam, se calhar definitivamente, para atividades mais “seguras”, como o gaming ou a simples e total inatividade do rabo-no-sofá?
O documento saído anteontem da reunião das federações desportivas com o Comité Olímpico de Poetugal, o Comité Paralímpico de Portugal e a Confederação de Desporto de Portugal, anteontem, pode até não ter passado das páginas mais escondidas dos jornais desportivos e não ter obtido um segundo de ar nas televisões, mas da celeridade da resposta que ele venha a obter da parte do poder político depende toda a estrutura do desporto nacional nas próximas décadas. É fundamental que se definam medidas e que as autoridades políticas e sanitárias emitam orientações específicas para a retoma do desporto federado em segurança. Se tiverem dificuldades para raciocinar com base em abstrações, façam assim: imaginem que Cristiano Ronaldo tinha agora dez anos – a idade do seu filho mais velho – e que, em vez de bilionário, estava nas camadas jovens do Nacional, impedido de voltar aos treinos há seis meses e sem perspetiva de poder fazê-lo nos tempos mais próximos. E agora imaginem o futebol português sem ele no último quarto de século. Perceberam agora?