Solta o ator que há em ti
Bruno Lage foi sempre um treinador pacato até achar que, na atual situação, tinha de contagiar os adeptos e marcar a diferença face a Schmidt. Na vida, somos todos atores. Não há mal, mas não resolve.
Palavras: 1315. Tempo de leitura: 7 minutos (áudio no meu Telegram)
Há equipas com problemas que não só excedem as quatro linhas como, às vezes, é sobretudo aí que os têm. Não creio que o Benfica esteja neste último grupo, mas acredito que Bruno Lage teve razão ao identificar o tema da relação com os adeptos como prioritário, por mais estranho e artificial que pareça ver-lhe o corpo longilíneo aos saltos, virado para a bancada, a socar o ar, a pedir adrenalina ao público presente e a trazer para a causa aqueles que o veem na TV, como se fosse um condutor de orquestra com excesso de cafeína no sistema. Não, nenhuma equipa ganha jogos porque o treinador pula como uma bola saltitona junto à linha lateral ou deixa de os ganhar porque ele se deixa ficar placidamente de mãos nos bolsos a assistir ao desenrolar do mundo à sua frente, controlando a saída de ar com os lábios, como fazia Schmidt, mas quando se chega a um clube e se deteta um divórcio entre as bancadas e o homem que nos antecede temos de fazer de tudo para que se estabeleça uma diferença, pois aí começa a anular-se um dos problemas. Ganho o público, estabelecido o “ambiente favorável” a que Lage não se cansa de aludir em cada intervenção pública, poderá manter essa questão em lume brando e concentrar-se na resolução de todas as outras que estiveram na origem do despedimento do antecessor.
Nem todos os treinadores têm o seu momento Kodak, para mais tarde recordar. Mas todos os treinadores são atores. Ou acham que quando José Mourinho correu pela linha lateral até à bandeirola de canto de Old Trafford para se juntar aos jogadores na celebração do golo com que Costinha carimbou a eliminação do Manchester United, há 20 anos, não sabia que todas as câmaras de televisão iriam concentrar-se no esvoaçar do seu sobretudo de caxemira? Ou que o bater no peito de Sérgio Conceição após uma vitória na Luz ou o ‘mic drop’ de Rúben Amorim no Marquês na sequência do título foram apenas fruto da inspiração momentânea? Não foram: se num dos casos houve euforia, noutro revolta, noutro ainda felicidade gerida, o que une todos estes momentos é a noção de palco. Tudo aquilo se trabalha, se ensaia e nem sequer tem de ser bonito e sedutor. Basta que seja eficaz, que chame para a trincheira quem tem de ser chamado. Nunca se viu nada disto em Bruno Lage? Não. O sadino foi sempre um tipo calmo e tranquilo, mas as motivações mudam, mesmo que as pessoas sejam as mesmas. Até o pequeno Jaime, o filho de que o técnico falava nas conferências de imprensa da anterior passagem pela Luz, há-de ter passado dos SuperWings para desenhos animados um pouco mais preenchidos com sequências de ação, porque as circunstâncias em que ele se encontra são hoje tão diferentes das que eram há quatro anos como as do pai, que na altura tentava impor uma equipa cheia de jovens e hoje se centra na relação de jogadores já calejados com um público exigente e pouco dado a acomodamentos.
O Benfica não deixava de ganhar jogos por causa da falta de uma relação empática entre Roger Schmidt e os adeptos nem sequer por causa da falta de apoio destes, que mesmo com uma enorme desconfiança acerca da equipa eles estiveram sempre lá para a empurrar. Mas coisas tão simples como o encaminhar dos jogadores até à extremidade do estádio onde estavam os que foram a Belgrado de forma a agradecer-lhes o constante encorajamento no inferno do Marakana acabam por concitar boas vontades e por deixar mais enterrada no fundo de cada um a tentação de os recriminar caso alguma coisa corra mal. E a questão é que, apesar das duas vitórias que soma neste regresso ao clube, Bruno Lage não conseguiu ainda – e anormal seria que o tivesse conseguido, praticamente sem treino e liderança consolidada – anular as coisas que o Benfica faz mal. Mas a diferença na empatia nota-se em coisas tão simples quanto esta: Schmidt era excessivamente defensivo porque usava Barreiro e Florentino ao mesmo tempo a meio-campo, mas quando Lage acaba o jogo com Barreiro, Florentino e Aursnes e ainda lhes junta Beste – que na gestão anterior era lateral – como extremo-esquerdo já está a ser avisadamente precavido. Foi só nos últimos minutos e para segurar o jogo? É verdade. Mas o próprio treinador explicou que, podendo, já teria feito as alterações mais cedo e que só as não fez antes porque teve de gastar uma das pausas para substituições com a lesão de Bah e não quis ficar privado da possibilidade de mexer tanto tempo antes do final da partida. Porque os problemas que levaram às trocas estavam à vista na forma como o Benfica perdeu o controlo logo após o intervalo.
Houve dois Benficas, ontem, no Marakana. O que levou a equipa ao 2-0 é o que quer Lage. Foi um Benfica personalizado, a pressionar alto, a ganhar bolas no meio-campo ofensivo, a tomar conta da iniciativa do jogo, a manter o campeão sérvio sempre mais perto da sua área. Esse Benfica não foi só, como muitas vezes se diz, fruto do pedigree europeu do clube, do que quer dizer vestir aquela camisola, porque pedigree também o Estrela Vermelha tem – falta-lhe é a qualidade que, apesar de tudo, o Benfica mostrou no futebol incisivo e prático de Aktürcoglu, na condução criativa de Kökçu desde zonas mais recuadas e na maneira como tanto Bah como Carreras souberam inserir-se em zonas atacantes quando a equipa tinha a bola. Mas depois veio o outro Benfica, o que não foi capaz de impedir que uma equipa que é claramente de um patamar abaixo – soma um empate e dez derrotas, com 33 golos sofridos, nos 11 jogos que fez na Champions desde a vitória contra o Olympiakos, em 2019 – crescesse e ameaçasse aquele que era o desfecho natural do jogo, que era a vitória das águias. Entre o livre com que Kökçü fez o 2-0, aos 29 minutos, e outro livre que o médio turco fez passar sobre a barra da baliza sérvia, aos 68’, o Estrela Vermelha fez nove dos 15 remates com que acabou a partida, muito à custa de uma superioridade dificilmente explicável no seu corredor esquerdo. E, até trocar os extremos de lado, o Benfica não registou nem um.
Há coisas que se trabalham. E quando digo isso estou a pensar, por exemplo, no crescimento que Carreras conheceu no plano defensivo desde o primeiro jogo que fez de águia ao peito até hoje e na possibilidade de um Kaboré ontem tão desastrado a defender que forçou Lage a pôr-lhe Aktürcoglu à frente, como segundo lateral, poder vir a crescer também. Há coisas que já estão enraizadas e que serão bem mais difíceis de resolver. E aqui estou a pensar na forma como os dois centrais foram descoordenadamente à procura de NDiaye, o ponta-de-lança que baixou em apoio, e os dois laterais ficaram mais baixos, dando condição legal a Milson para o empate, bem no interior da área, porque estas idas à queima sempre foram uma imagem de marca de Otamendi e não há-de ser agora, aos 36 anos, que ele vai mudar. E por fim há coisas que são próprias do adormecimento, que é um luxo a que a equipa não pode dar-se neste momento e que, não, não se resolve simplesmente se Bruno Lage mantiver a imitação daqueles bonecos insufláveis que se veem à beira de qualquer estrada nos Estados Unidos e passar a fazê-lo virado para o relvado em vez de se dirigir apenas aos espectadores.
Eu entendo e tenho tendência para concordar com a análise, mas também entendo porque se fala da passividade de Schmidt. Um treinador que mal se mexe, quando a equipa está mal, sem dar indicações, dá a ideia de que não está a fazer nada, que parece satisfeito com o que vê ou que entende que não deve mudar nada. Até pode não ser, e é verdade que não se ganha ou perde consoante o que o treinador se mexe, mas não deixa de ser estranho e dar uma má imagem ou uma imagem contrária à que se vê. Juntando com as declarações arrogantes que tinha após o jogo, ou dizendo que estava tudo bem, ou atirando um jogador para debaixo do comboio...Acaba por ajudar nessa imagem.