As diferenças do feminino
A eliminação do Benfica da Liga dos Campeões feminina é um revés para quem tem liderado a afirmação internacional do setor, mas não pode ser vista como fracasso financeiro ou de gestão de equipa.
Palavras: 1230. Tempo de leitura: 6 minutos (áudio no meu Telegram).
Portugal corre sérios riscos de, pela primeira vez desde que, em 2021, a UEFA introduziu uma fase de grupos para as melhores equipas, na sequência de eliminatórias preliminares, não vir a marcar presença nessa etapa da Liga dos Campeões de futebol feminino. O Benfica, que foi quem garantiu sempre a representatividade nacional, ainda por cima aumentando o pecúlio de pontos de ano para ano e chegando até, na época passada, aos quartos-de-final – o que permitiu que esta época o Sporting se lhe juntasse nas preliminares –, caiu ontem em casa (0-2) contra as suecas do Hammarby IF, de modo que a única hipótese de virmos a ter uma equipa nas 16 apuradas para a elite reside hoje na esperança de as leoas virem a reverter em Madrid o golo de desvantagem (1-2) que levam da partida em casa contra o Real. Não é impossível, mas é improvável. E a forma como se olha para isto começa desde logo a marcar as diferenças entre as realidades do futebol jogado por homens e por mulheres – o impacto da eliminação, ao contrário do que sucederia nos homens, não é financeiro, mas sim o de um passo atrás numa caminhada que, mesmo assim, se a virmos de uma perspetiva mais ampla, tem sido altamente progressiva.
Muitos adeptos do Benfica usaram já esta eliminação, que não se previa – até porque a equipa portuguesa tinha ganho a primeira mão, na Suécia, por 2-1 –, como arma de arremesso contra a direção do clube, nomeadamente por ter aceitado a saída da craque da equipa, a atacante Kika Nazareth. Kika, de 21 anos, cinco golos e quatro assistências nos nove jogos que fez entre preliminares e competição a sério na última Liga dos Campeões, saiu neste defeso para ir jogar no FC Barcelona, atual campeão europeu e emblema das últimas três Bolas de Ouro (Alexia Putellas, duas vezes, e Aitana Bonmati, uma). Kika não foi a única jogadora importante a deixar o Benfica, pois entre as 16 que foram titulares pelo menos uma vez na última Champions também saíram as internacionais Jéssica Silva (para o Gotham FC, dos Estados Unidos) e Ana Seiça (para o Tigres, do México). Mas em contrapartida o Benfica contratou a veterana Cristina Martín-Prieto (ex-Sevilha FC), autora de dez golos em nove jogos esta época. E, ao contrário do que se analisa no futebol masculino, estas mudanças não têm de ser vistas da perspetiva do investimento ou desinvestimento ou da gestão de equipa pura e dura. O que está aqui em causa, na maioria das vezes, ainda são as aspirações de carreira das jogadoras. Kika terá ido para Barcelona porque lá podia crescer enquanto futebolista, a jogar ao lado das melhores, da mesma forma que Martín-Prieto veio para o Benfica porque aqui podia ter uma visibilidade que o Sevilha FC não lhe garantia.
A dimensão de negócio do futebol feminino – aquilo que muitos criticam na versão masculina – não atingiu (ainda, pelo menos) o nível avassalador que representa no jogo dos homens. E as coisas depois correm como têm de correr. Aqui há um par de semanas deu brado uma declaração da suíça Alisha Lehmann, que joga na Juventus, tal como o seu namorado, o médio brasileiro Douglas Luiz. “Falo muitas vezes com ele depois dos treinos e digo sempre que a situação não é justa. Fazemos o mesmo trabalho e ele ganha cem vezes mais do que eu”, disse Alisha à Gazzetta dello Sport. Entendo e apoio as reivindicações da jogadora enquanto mulher, porque nunca serei capaz de aceitar desigualdades de género, mas parece-me que a situação de que ela se queixa tem pouco a ver com esse flagelo social que ainda nos apoquenta. Acho até muito injusto que Alisha apresente o seu caso e o equipare ao de uma mulher que receba menos, nem que seja 10 por cento, do que ganha um homem num banco, numa sociedade de advogados ou numa repartição de finanças. O caso de Alisha está mais relacionado com o que eu vivo enquanto comentador de futebol e em comparação com quem faz o mesmo que eu, por exemplo, na BBC, onde ganha 100 vezes mais do que eu. A diferença, tanto no caso de Alisha como no meu, tem que ver com o mercado, com o facto de o futebol das mulheres e o comentário televisivo em Portugal ainda não terem atingido o plano “industrial”, de estarem ainda naquele plano de que os românticos tanto gostam, que é o do amor à camisola ou o das perspetivas de progressão de carreira – na primeira das três décadas que já levo a fazer comentário televisivo de futebol cheguei a trabalhar de borla para fazer marca, por exemplo. Gosto disso? Não. Mas não tento colar a minha luta a casos que, eles sim, são dramáticos de tão injustos.
É por isso também que me parece injusto que se apresente agora à direção do Benfica a conta desta queda da equipa na Liga dos Campeões e se relacione o insucesso com a decisão de deixar sair Kika – creio que o caso de Jéssica foi diferente. O Benfica não deixou sair a jogadora para receber os 500 mil euros da transferência, mas sim porque sair era o que fazia sentido neste momento na carreira dela. Da mesma forma, mesmo havendo um longo caminho a fazer para estabelecer um nexo de causalidade entre a saída da jogadora e esta eliminação, o maior prejuízo acarretado pelo eventual enfraquecimento da equipa não está nos cerca de 750 mil euros que o Benfica deixará de arrecadar pela ausência na fase de grupos da Champions mas sim na quebra de potencial de marca que esta eliminação traz. O resultado final do insucesso desportivo nos homens e nas mulheres pode até ser o mesmo, mas o caminho para lhe chegar é muito diferente – e o das mulheres é, apesar de tudo, mais longo, por não estar influenciado pela dimensão financeira. Se a ausência da Champions masculina leva ao enfraquecimento da equipa pela necessidade de criar mais-valias com transferências que compensem a perda de receita – e isso é quase sempre imediato –, nas mulheres o eventual enfraquecimento das equipas por via dessa mesma ausência ainda está mais relacionado com a noção imaterial de que vale ou não vale a pena jogar ali, por comparação com a hipótese de o fazer noutro emblema.
O enorme impulso dado pelo Benfica nos últimos anos de afirmação internacional da sua equipa feminina não se perde com 90 minutos de insucesso, da mesma forma que todo o trabalho feito pela FPF na criação de uma Liga ou na sua divulgação constante, por exemplo, no seu Canal 11, não arde se, mais logo, o Sporting não conseguir eliminar o Real Madrid e Portugal ficar fora da Liga dos Campeões de 2024/25. Sim, são passos atrás, mas não quebras irrevogáveis. O futebol feminino ainda não pode ser visto com os mesmos olhos do masculino, nem na gestão de carreiras nem na gestão das equipas. E antes de responderem “ainda bem”, pensem bem no que isso implica, nomeadamente na forma como encaram a competição num e no outro caso.
Sendo certa a diferença dos mercados, também é verdade que os clubes secundarizam o futebol feminino. Veja-se o número de vezes que os jogos são disputados no estádio dos clubes vs. campos das academias. É difícil ter assistências relevantes e ganhar tracção quando os jogos são realizados em campos secundários, com pouca capacidade e muito longe dos centros urbanos.
Esperava a continuação do tema de ontem e já vinha com ela preparada para falar da forma como a ambição de vencer morreu em Portugal. :P
O futebol feminino está 40 anos atrasado em relação ao futebol masculino e isso nota-se na forma como o futebol se joga nesse escalão, muito mais lento e trapalhão do que aquilo que seria aconselhável. Até o considero outro escalão. Ao menos ainda não recorrem à estupidez do espetáculo de gemidos do ténis feminino, felizmente. Uma vez que se trata de futebol feminino, penso que o Sporting terá tudo para vencer, que será um adversário bem mais acessível do que no masculino, precisamente porque não existirá essa distância enorme que existiria no masculino, sendo este um futebol mais próximo do que seria uma eliminatória da Taça UEFA ou da Taça dos Campeões Europeus em 1984. Haverá que pensar o negócio e a evolução do desporto em Portugal, como é necessário no masculino pensar o negócio e chegar a um plano económico-financeiro do futebol em Portugal.